Título: Até que a dor desapareça
Autor: Hisham Matar
Fonte: O Globo, 06/03/2011, O Mundo, p. 32

Nestes últimos dias, algo fundamental mudou. Posso perceber no meu corpo, na maneira como minhas costas se sentem leves. Não olhei para o meu rosto no espelho, mas em minha mente a velha tristeza nos olhos está diferente agora. Muamar Kadafi, que assombrou a Líbia nos últimos 42 anos, ainda está lá, mas a História o substitui, e é impossível imaginar a Líbia com ele agora.

Durante os últimos 32 anos, desde que minha família deixou a Líbia, eu tenho olhado por cima do meu ombro. Lembro-me de uma vez ao pousar em Heathrow, após ter passado a maior parte do voo provocando meu querido pai sobre sua nova cor de cabelo, ouvi um homem no desembarque sussurrar ao lado dele: ¿Então, como fica essa aparência de Jaballa Matar afinal?¿ O sotaque era líbio.

Eu nunca impliquei com meu pai de novo quando ele pintava os cabelos ou usava aqueles terríveis tons escuros que sempre adotava nas férias de família na Europa. Eu também não o provocava quando me pedia para ficar longe enquanto checava se o carro estava ligado.

No Egito, onde morávamos, nós tínhamos guardas armados 24 horas. Eles se sentavam do lado de fora, seguiam-nos em todos os lugares que fôssemos. Tornou-se natural presumir que nossas conversas ¿ pelo telefone, em casa, em qualquer lugar ¿ eram gravadas. Nós nunca perdemos a noção de que, devido à oposição aberta do meu pai à ditadura Kadafi, nossa vida era vivida diante de uma plateia dos serviços secretos da Líbia e do Egito. Nós suspeitávamos que cada funcionário da nossa casa ¿ as mesmas mãos que arrumavam nossas camas e preparavam nossa comida ¿ pertencia à Mukhabarat (polícia secreta) egípcia.

Sabíamos que esses guardas, que nos foram impostos pelo governo egípcio, não estavam lá para nos proteger, mas para monitorar nossas vidas. Após dez anos disso, em 1990, quando tornou-se conveniente e rentável para o regime egípcio entregar meu pai para os líbios, aqueles mesmos homens que nos resguardavam sequestraram meu pai. E, então, eles começaram a nos ameaçar para ficarmos em silêncio: ¿Se você falar, isso prejudicaria o Sr. Jaballa¿, diziam.

Os egípcios nos levaram a crer que meu pai estava sendo mantido no Egito. Três anos depois, chegou uma carta. Ela fora contrabandeada para fora de Abu Salim, a famosa prisão política em Trípoli. Estava escrita com a letra do Pai. Detalhava o que acontecera, que o Pai fora levado para a Líbia no dia seguinte à captura. A carta revelou a verdade, embora tenha calado ainda mais nossas línguas. Nela, o Pai pedia que não disséssemos a ninguém: ¿Isso me mandaria a um abismo sem fundo. Eu preferiria morrer sob tortura a revelar os nomes daqueles que ajudaram a entregar esta carta¿.

No fim das contas, não dizer nada tornou-se insuportável e eu falei. Em 2006, depois do meu romance, ¿No País dos homens¿, sobre a vida sob Kadafi na Líbia, tornei-me um crítico aberto da ditadura líbia. Isso causou uma ansiedade profunda na minha família. Considerou-se que não era mais seguro para mim visitar o Egito. Nos últimos cinco anos, não pude visitar a cidade onde minha família e amigos de infância vivem. Vários amigos e parentes líbios não entravam em contato comigo quando visitavam Londres. Eu entrei em um segundo exílio. Em seguida, autoridades líbias começaram a me enviar mensagens pedindo-me para parar. Eles me ofereceram suborno. E quando isso não funcionou, as ameaças insinuadas começaram.

Depois de cada artigo ou entrevista em televisão ou rádio nos quais critiquei o governo líbio ou chamei o ditador de ditador ¿ um crime punível com a morte na Líbia ¿ eu passava vários dias sentindo o peso do olhar do regime nas minhas costas, todo o tempo dizendo a mim mesmo para parar de ser paranoico.

Como sabe todo líbio, quando você diz a um motorista de táxi em Nova York, Londres, Paris ou Cairo, de onde você é, quase sempre dizem: ¿Ah, sim, Kadafi¿.

¿Não, Kadafi não, eu não venho de Kadafi, eu venho da Líbia¿, eu dizia, assegurando que minha voz estava vazia de raiva, porque mesmo os oprimidos querem dar a impressão de levarem as coisas na esportiva.

Eu podia me sentir, particularmente na última década, dono de uma crescente desesperança. Comecei a me perguntar se Kadafi não matou o espírito da Líbia. Eu podia sentir meu coração endurecer quanto ao meu próprio país. Eu abriguei um desagrado silencioso e perverso para com meu próprio povo. Perverso porque o ódio de uns contava como o ódio de si mesmo. Às vezes, em reuniões líbias, isso momentaneamente desaparecia e eu me encontrava completamente apaixonado por todas as coisas da Líbia. Vacilar entre esses dois extremos muitas vezes me deixou vazio e cansado.

Tenho 40 anos de idade. Eu não conheci a Líbia sem Kadafi. Nestes dias, testemunhando a queda da ditadura e, mais importante, o levante do povo líbio, estou me dando conta de que até agora meu país foi uma fonte esmagadora de medo, dor e constrangimento. Agora é uma fonte de alegria e orgulho.

Estando em tão estreita relação temporal e geográfica com os levantes da Tunísia e do Egito, a revolução líbia é, de certa forma, essencialmente única. Isto é particularmente gratificante testemunhar, porque o projeto de Kadafi sempre foi uma campanha narcisista, centrada principalmente em refazer seu povo à sua própria imagem. Agora podemos ver que ele falhou, e que o espírito humano sempre busca a luz.

Os líbios dançando entre o mar e o tribunal em Benghazi, de mãos dadas, balançando enquanto cantam ¿Nós vamos ficar aqui, até que a dor desapareça¿ estão redescobrindo o que é belo sobre a Líbia: nossa longa resistência ao fascismo ¿ de Mussolini a Kadafi ¿ o nosso amor à moderação, a nossa abertura mediterrânea ao mundo, nosso humor e nossa música.

Eu não sei o que Kadafi fez com o meu pai, mas sei que ele não conseguiu ter sucesso no assassinato do espírito líbio.

© 2011 por Hisham Matar

HISHAM MATAR é escritor líbio e vive em Londres, autor de ¿No país dos homens¿ (Companhia das Letras) e de ¿Anatomia de um desaparecimento¿ (Ed. Record), que será lançado no Brasil no 2º semestre.