Título: Ditador usa emissários para pressionar Europa
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Fonte: O Globo, 10/03/2011, O Mundo, p. 31

Segundo analistas, Kadafi estaria tentando usar temor de onda de imigração ilegal e de mergulho da Líbia na anarquia

BRUXELAS e WASHINGTON. Com as Nações Unidas rachadas sobre a possibilidade de estabelecer uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia ¿ e uma aparente hesitação americana quanto à medida ¿ o ditador Muamar Kadafi contra-atacou na arena diplomática. Seu primeiro passo foi dar uma entrevista à TV estatal turca TRT. Mas, além de buscar o apoio do governo de Ancara ¿ um integrante de peso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ¿ e a empatia dos turcos muçulmanos, Kadafi despachou, ainda, enviados especiais para outro destino-chave: Bruxelas, que sedia hoje uma reunião de emergência dos 27 chanceleres da União Europeia (UE) e um encontro dos ministros da Defesa dos 28 membros da Otan.

Para observadores, o objetivo da manobra de Kadafi é impedir a intervenção estrangeira na Líbia, apelando, sobretudo, para o risco da imigração ilegal em massa rumo à Europa caso seu regime caia ¿ perspectiva sombria para um continente que ainda não se reergueu da crise econômica iniciada em 2008 ¿ ou do mergulho do país na anarquia, como a Somália.

Logo cedo, três jatos particulares do ditador partiram de uma base militar em Trípoli, levantando uma série de especulações sobre seus destinos e tripulantes. Além da Bélgica, uma segunda aeronave pousou numa base militar egípcia nos arredores do Cairo. De acordo com o jornal estatal ¿al-Ahram¿, a bordo estava o vice-ministro líbio da Defesa, Abdelrahman al-Zawi, que levava uma mensagem ao Conselho Militar que governa o Egito e ao presidente da Liga Árabe, Amr Moussa.

O terceiro avião líbio aterrissou em Malta e, depois de algumas horas, seguiu para Portugal, país que tradicionalmente manteve bom relacionamento com Kadafi ¿ o primeiro-ministro português, José Sócrates, foi um dos únicos líderes europeus a participar de uma cúpula União Europeia-União Africana em Trípoli, em dezembro passado. O emissário líbio foi recebido pelo ministro das Relações Exteriores, Luís Amado, num hotel de Lisboa e, embora a reunião tenha sido classificada como ¿informal¿, a diplomacia portuguesa negou-se a revelar a identidade, o cargo do enviado ou detalhes sobre a reunião.

¿ Foi um encontro pedido pelas autoridades líbias e, na véspera, foi informado à chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton ¿ afirmou uma fonte diplomática à rede RTP.

Otan encomenda planos para ação eventual

Se em Washington o governo Barack Obama se mostrava reticente quanto à interferência militar sem o consenso internacional, França e Reino Unido avançam na elaboração do anteprojeto da resolução criando uma zona de exclusão aérea a ser apresentada ao Conselho de Segurança da ONU ¿ mesmo diante da ameaça de veto de Rússia e China, contrárias à medida.

Apesar de pressionado, o secretário-geral da Otan, Anders Fogh Rasmussen, manteve o tom defensivo e reiterou ontem que a aliança não está buscando uma intervenção na Líbia. Mas fez uma advertência:

¿ Pedimos a nossos militares para fazer um planejamento prudente para qualquer eventualidade. Foi pedido. Se necessário, podemos reagir num curtíssimo espaço de tempo.

Para Micah Zenko, do centro de pesquisas Council on Foreign Relations, todas as possibilidades aventadas teriam impacto mínimo na redução da violência.

¿ Não haveria uma consequência direta nos confrontos em terra, a artilharia ainda seria operante e helicópteros voando baixo poderiam ter chances de atacar ¿ advertiu.

Zenko argumenta, ainda, que uma ação militar deveria ser impreterivelmente precedida de um amplo estudo sobre os diferentes cenários possíveis após a eventual queda do regime de Muamar Kadafi.

¿ O que viria depois da intervenção? O vácuo de poder é repleto de incertezas. Na Líbia há uma falta das infraestruturas políticas dos Estados modernos ¿ lembrou o pesquisador.