Título: O ciclo vicioso das dívidas
Autor: Gomes, Wagner; Lignelli, Karina
Fonte: O Globo, 13/03/2011, Economia, p. 27

Brasileiro já destina 22% da renda para cobrir endividamento

Afartura de crédito que marcou o governo Lula - e ajudou na ascensão da classe C - começa a exibir seu lado nada glamouroso. O comprometimento da renda do brasileiro com o pagamento de dívidas aumentou 6,9 pontos percentuais (46,6%) entre 2003 e 2010, segundo cálculos da LCA Consultores com base em dados do Banco Central (BC). De acordo com o BC, em janeiro de 2003, o brasileiro precisava destinar 14,6% do seu ganho familiar mensal para a quitação de débitos. Oito anos depois, em dezembro de 2010, esse percentual havia passado para 21,4%. Houve novo salto em janeiro deste ano (o dado mais recente divulgado pelo BC), quando o indicador atingiu 22,2%. Especialistas dizem que "o limite de segurança" para evitar um ciclo vicioso de dívidas é de 25% da renda.

Os dados do BC levam em consideração apenas as dívidas dos consumidores com os bancos. São dívidas com crédito pessoal, consignado (com desconto em folha de pagamento), financiamento de veículos e crédito habitacional. Não estão incluídas as pendências com cheque especial e cartão de crédito, que embutem taxas de juros superiores a 10% ao mês e costumam fazer os maiores estragos no orçamento.

- O crédito este ano vai ficar menos abundante e mais caro, o que significa que a capacidade de pagamento de dívidas pelas famílias deve piorar. Não temos uma trajetória explosiva de comprometimento da renda com dívida, mas é preciso atenção com essa luz amarela. O quadro para 2011 é menos benigno - afirma o economista Douglas Uemura, da LCA Consultores.

A estabilidade da economia e a oferta abundante de crédito nos últimos anos levou o brasileiro a experimentar um pouco o estilo de vida de consumidores de Primeiro Mundo. Nos EUA, segundo o Federal Reserve (o banco central americano), as dívidas comem 17% da renda. É menos do que no Brasil, mas é preciso considerar a diferença de renda entre os trabalhadores dos dois países. Enquanto nos EUA a média chega a US$4,4 mil por mês, no Brasil o valor é de cerca de R$1,5 mil (US$882).

De acordo com a Associação Comercial de São Paulo, o valor médio da dívida na capital paulista subiu 46,6% entre 2003 e 2010, passando de R$1.500 para R$2.200.

- Comprometer 23% ou 24% da renda é preocupante - diz Luiz Rabi, economista-chefe da Serasa Experian.

Rabi adverte que o cenário anterior de juros baixos e financiamentos a perder de vista passa por rápida mudança. É reflexo das últimas medidas anunciadas pelo Ministério da Fazenda, que, depois de estimular o crédito, agora tenta esfriar um pouco a velocidade da economia e tirar força da inflação. O prazo médio para financiamento de veículos, por exemplo, passou de 44 meses em novembro para 41 meses em janeiro, segundo dados da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac). Já o prazo oferecido para outros bens, como eletroeletrônicos e móveis, caiu de 16 para 12 meses - mesmo patamar de 2008 para 2009, marcada pela crise financeira.

Nesse cenário, o que só era endividamento pode se transformar em inadimplência. De acordo com o levantamento do Banco Central, em janeiro de 2003, as dívidas com atrasos superiores a 90 dias representavam 7,7% do total de crédito então disponível, de R$88,5 bilhões. Em janeiro passado, esse percentual era menor (5,7%), mas incidia sobre uma base mais encorpada (R$559,6 bilhões).

Na agência do Serviço Central de Proteção ao Crédito (vinculado à Associação Comercial), no Centro de São Paulo, as histórias de quem se endividou e tenta limpar o nome são semelhantes. Em 2006, quando era atendente em uma concessionária de veículos, Patrícia Alessandra dos Santos decidiu recorrer a um empréstimo para comprar roupas, sapatos e material escolar para os cinco filhos. Mas saiu do banco com mais: além do consignado, o gerente concedeu limite maior no cheque especial e cartão de crédito.

- Gastei além do que devia e começou a ficar difícil arcar com as contas. E o salário não acompanha - contou.

O que Patrícia não esperava era perder o emprego em 2009 e ficar cerca de um ano fora do mercado de trabalho. Sem dinheiro, as dívidas chegaram a R$6 mil. Hoje, empregada numa empresa de telemarketing, tem renda familiar de R$1.800. Conseguiu quitar dois terços do débito e negocia o restante com o banco em prestações em torno de R$50.

O motorista Marcos Antônio de Souza enfrentou situação parecida. Casado, com filhos, pagando pensão alimentícia, prestações de um carro, faturas do cartão de crédito e carnês de lojas, também perdeu o emprego e ficou oito meses parado. Resultado:

- Juntando tudo, devia uns R$23 mil - contou.

Há um ano, conseguiu um novo emprego como motorista, com renda em torno de R$1,3 mil, e chegou a pagar algumas dívidas menores. Agora, negocia.

- O banco precisa reduzir os juros.

Os sinais de que esse processo de endividamento não perdeu força aparecem em pesquisas divulgadas nas últimas semanas. No comércio, o total de endividados subiu nos dois primeiros meses de 2011, segundo a Confederação Nacional de Comércio (CNC). Um levantamento com 18 mil famílias em todo o país mostrou que o total de endividados passou de 59,4% em janeiro para 65,3% em fevereiro. No mesmo período, o percentual de famílias com dívidas em atraso passou de 22,1% para 23,4%. Destes, 7,7% não terão como pagar o que devem.

- À medida que a economia dá sinais de desaceleração com o crescimento mais fraco da indústria, a inadimplência deve aumentar - disse Carlos Thadeu de Freitas, economista-chefe da CNC e ex-diretor do BC.