Título: Questão líbia não se esgota em Benghazi
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Fonte: O Globo, 17/03/2011, Opinião, p. 6

O caso da Líbia de Muamar Kadafi é típico das dificuldades que a comunidade internacional enfrenta quando precisa agir depressa para lidar com uma situação que se deteriora rapidamente. Desde que o ditador passou à contraofensiva sobre os rebeldes, discute-se a imposição de uma zona de exclusão aérea para impedir que ele use a aviação militar em apoio a blindados e artilharia, para retomar o território que perdera para os que lutam contra sua ditadura de mais de 40 anos.

Ontem, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, manifestou esperança de que o Conselho de Segurança vote hoje a resolução que cria a zona de exclusão aérea. Mesmo na difícil hipótese de que isso aconteça - há resistências, por exemplo, da Rússia - pode ser muito tarde, o que é lamentável. O fato de a Liga Árabe ter dado respaldo à medida deve estimular o rompimento do impasse.

Ou a comunidade internacional age agora - o tempo é curto e talvez a queda do bastião rebelde de Bengazhi já seja irreversível - ou terá de tratar com um regime que deverá patrocinar um banho de sangue na Região Leste do país e em todos os outros focos de resistência, sem falar que a tendência é de Kadafi se tornar ainda mais autoritário e truculento.

É de se lamentar que ainda não se tenha chegado a um acordo no Conselho de Segurança sobre como agir para deter um ditador que oprime o povo líbio há mais de quatro décadas, ainda mais que, na esteira do movimento pró-democracia no mundo árabe, rebeldes líbios pegaram em armas e, corajosamente, enfrentam a máquina militar de Kadafi, reforçada com mercenários.

Mas esse é um dos percalços do multilateralismo - a busca de consensos que respaldem a ação internacional contra um de seus membros para impedir guerras civis, banhos de sangue e genocídios. O exemplo típico do outro lado da moeda é o que aconteceu na invasão do Iraque, quando os EUA e a Grã-Bretanha agiram unilateralmente e sem justificativas convincentes, com os resultados conhecidos.

O fato de a ação multilateral ser mais lenta não pode se tornar um facilitador da vitória final de Kadafi, um homem que não titubeia em matar desafetos ou em bombardear civis, se necessário, para se manter no poder. A falta de legitimidade de seu regime foi suficientemente demonstrada: a Liga Árabe, em decisão inédita, recomendou ao Conselho de Segurança a criação de uma zona de exclusão aérea contra um de seus membros; a Itália, a maior aliada ocidental, apoiou as medidas contra o regime líbio; e o presidente da França, Nicolas Sarkozy, passou a considerar o Conselho Nacional Líbio, a liderança rebelde, e não mais o governo de Trípoli, como o legítimo interlocutor do país.

Mesmo que o coronel consiga neutralizar o movimento pró-democracia, a comunidade internacional deve continuar trabalhando para aumentar a pressão sobre seu regime, que mostrou fissuras graves, como a deserção de um número considerável de militares, inclusive de alta patente, para o lado rebelde. O Ocidente não pode mais fingir que não vê as mazelas da ditadura para manter seus milionários contratos de compra de petróleo e gás e de construção de projetos grandiosos dos sonhos do ditador. Kadafi precisa ser passado.