Título: Rastros de Kadafi no Brasil
Autor: Nogueira, Danielle
Fonte: O Globo, 20/03/2011, Economia, p. 37

À MARGEM DO VELHO CHICO

Fundo bilionário da Líbia tem interesse em megaprojeto de irrigação na BA, que divide moradores

É no sertão baiano, às margens do Rio São Francisco, que o governo de Muamar Kadafi - envolvido em uma sangrenta disputa com rebeldes para se manter à frente da Líbia - pode fazer sua grande aposta de investimento no Brasil. É lá, nas cidades de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia, a 500 quilômetros de Salvador, que está sendo implantado um dos maiores projetos de irrigação do país: o Baixio do Irecê, com orçamento de R$880 milhões, dos quais R$550 milhões previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal.

O projeto por ora está sendo tocado pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), estatal ligada ao Ministério da Integração Nacional, e deve ser licitado ainda este ano no âmbito das Parcerias Público Privadas. Entre os cotados para ganhar o leilão está o consórcio formado pela Codeverde - que tem como sócio majoritário o grupo Odebrecht - e o bilionário fundo soberano da Líbia, o Libian Arab Foreign Company (Lafico), controlado pelo governo Kadafi e com investimentos diversos, que inclui até o time de futebol italiano Juventus.

O consórcio já destinou US$1,5 milhão - cada parceiro arcou com metade dos custos - para o desenvolvimento de uma proposta de modelo de negócios para a região, apresentada ao governo brasileiro em 2007 e que hoje está sendo aprimorada pelo Banco Mundial. É ela que servirá de base para o edital de licitação do Baixio do Irecê. Para a elaboração do estudo foram contratados na época o banco Santander, a empresa de engenharia gaúcha Magna e a consultoria de agronegócios FNP.

Odebrecht vendeu terras à estatal

Segundo a Codevasf, a ideia é promover, às margens do "Velho Chico", o cultivo de cana-de-açúcar e frutas, além de grãos como feijão e milho. A produção deve ser iniciada em cinco anos, e a soma de terras irrigadas será de 48 mil hectares. O consórcio vencedor terá de apresentar o modelo de aproveitamento das terras e concluir as obras, até agora realizadas com recursos públicos. Hoje, já há 42 quilômetros de canais construídos - o equivalente a uma maratona - de um total de 84 quilômetros. O prazo de concessão será de 35 anos.

- Queremos atrair empresas âncoras para criar escala de produção e viabilizar a logística. A previsão é que 25% dos lotes sejam reservados para pequenos e médios produtores, que receberão assistência dos maiores - diz Clementino de Souza Coelho, presidente interino da Codevasf.

A Codeverde é uma das principais interessadas no projeto. A empresa foi constituída em 1986 com o objetivo de construir uma espécie de condomínio rural, no qual uma infraestrutura comum seria usufruída por diferentes proprietários rurais, algo semelhante ao que se pretende fazer no Baixio do Irecê. A companhia também aparece em relatório do Ministério Público da Bahia ao qual O GLOBO teve acesso como ex-titular de fazendas desapropriadas pela Codevasf para tocar o projeto de irrigação em Xique-Xique. Hoje, a Codeverde tem 170 mil hectares na Bahia, área que será reduzida a 72 mil hectares no fim do mês, após novas vendas de terras à estatal.

A Codeverde não dá detalhes sobre as negociações de terras, mas reitera seu interesse no projeto. Diz ainda que, mesmo após a Líbia ter entrado em uma guerra civil, quando o edital de licitação sair consultará o Lafico para saber se ele manterá sua participação na segunda fase do empreendimento. Caso a parceria se confirme, não será a primeira vez que o grupo Odebrecht fará negócios com o governo de Kadafi. A empresa é responsável por obras orçadas em US$5 bilhões em Trípoli.

Já o interesse da Líbia no Brasil atende à estratégia do Lafico de diversificar investimentos e fazer do projeto do Irecê uma plataforma de exportação de alimentos e biocombustíveis. Em 2010, o país importou US$456,1 milhões do Brasil, mais que o dobro dos US$204 milhões de 2009. Entre os principais itens da pauta de importações estavam minério de ferro, carne e milho. A aproximação entre os dois países também deve ser entendida como resultado da estratégia diplomática do ex-presidente Lula de estreitar laços com o mundo árabe. Logo após a visita de Lula a nações árabes em 2003, uma missão de empresários e investidores líbios aterrissou por aqui, dando início às tratativas em torno do Baixio do Irecê.

- Inicialmente pensamos em um projeto binacional, mas o fundo preferiu fazer uma parceria com a iniciativa privada - lembra Souza Coelho, da Codevasf, que adota um discurso pragmático. - Não temos vinculação societária com o fundo (líbio) nem obrigação de fazer o projeto com eles apenas porque financiaram a proposta de modelo de negócios. Mas se eles quiserem participar, a licitação será aberta. Há muitos ditadores fazendo negócios no Brasil.

Igreja vê riscos para 1.200 famílias

Enquanto a licitação do Baixio do Irecê não sai, o projeto divide moradores da região. Segundo estimativas da Comissão Pastoral da Terra (CPT), há 23 comunidades, totalizando 1.200 famílias, vivendo no entorno do empreendimento. A maioria vive da pesca, da pequena lavoura e da criação de animais. A abertura de vagas com as primeiras fases das obras - a cargo de Andrade Gutierrez, da goiana Emsa e da mineira Barbosa Mello - enche os olhos de alguns, como João Vieira de Souza, de 43 anos, morador de Carneiro.

Pai de cinco filhos, Souza tirava o sustento da pesca e da plantação de mandioca e melancia. Após a chegada das empreiteiras, trabalhou um ano e sete meses no projeto de irrigação, com carteira assinada e um salário de R$550 mensais. Com o dinheiro, ergueu uma casa de alvenaria - antes morava em uma de taipa - e conseguiu comprar uma TV colorida.

- Acho que, para quem quer trabalhar, (o projeto) vai ser bom.

Na comunidade vizinha, Boa Vista, é fácil encontrar pessoas contrárias ao empreendimento. A razão é simples: as terras onde os moradores criavam seus animais hoje estão cercadas. Foram desapropriadas pela Codevasf e serão concedidas às empresas vencedoras do leilão. João Ferreira Santos, de 37 anos, criava suas seis cabeças de gado nas antigas fazendas sem ser incomodado pelos ex-proprietários. Agora, sabe que terá de encontrar outra fonte de renda.

- Tive que colocar os bois no circo (um cercado atrás de sua casa). Só vai piorar daqui para a frente - diz ele, que ganhava cerca de R$200 por mês com o gado e a pesca.

O educador da CPT Mauro Jakes Farias da Cruz teme que os moradores sejam excluídos do projeto.

- A lógica do agronegócio não respeita a cultura das famílias tradicionais. Eles ocuparam essas terras há décadas e têm de ser respeitados.