Título: Tudo aquilo que você mais ama
Autor: Sarmento, Claudia
Fonte: O Globo, 20/03/2011, O Mundo, p. 50

Numa de suas 36 vistas do Monte Fuji, Hokusai pintou a grande onda de Kanagawa. Uma imensa parede de água escura e a espuma branca no topo feito uma série de garras ¿ imagem, como já foi dito, fruto do medo quase religioso que sentia um artista num país cercado pelas águas. O Fuji fica lá atrás, diminuído de terror.

A grande onda de Kanagawa decora a parede, emoldurada, tapada com vidro, a grande onda presa por Hokusai em seu instante de ameaça e presa por nós em sua instância decorativa. Aquela onda-tigre em seu bote suspenso, e todos sabem o que virá mas ainda não veio, ainda não veio, é possível que os homenzinhos nos barcos ainda tenham fé em seus remos.

Na segunda sexta-feira de março, o dia amanhece como se já fosse primavera e nada treme, nada assusta, lá está a onda de Hokusai como sempre, normal e plástica, em sua parede normal e fixa. Há umas outras referências do Japão espalhadas aqui e ali, entre livros, quadros, objetos e cartazes apanhados na rua. Para alguns isso é meio ridículo. Não importa. Lembra daquele americano apaixonado por all things Brazilian? Ele parecia devoto de alguma religião. Meio ridículo. Não importa.

É então que vem o aviso, através de uma mensagem deixada no telefone: ligue a tevê.

Não era conveniente ligar a tevê, era de manhã e um dia azul de primavera ainda no inverno do Hemisfério Norte, um dia de mais em que pensar. Vá lá, se deixaram a mensagem é porque deve ser importante.

Horas mais tarde, um conhecido diz, de Tóquio, que o país foi sacudido para um lado e para o outro como um rato na boca de um terrier. Que as ruas da cidade estavam tomadas pelas pessoas que caminhavam de volta para casa, pois o metrô havia parado de funcionar.

Noutras partes do país, a tevê mostra a indiferença das águas (uma onda é grande de acordo com que perspectiva?) que carregam barcos junto com casas junto com automóveis e os empilham num canto qualquer. Onde calhar e sem discriminar. O pavor radioativo em Fukushima faz a tevê remexer nos arquivos e recuperar imagens de Chernobyl. O Japão evoca outros cenários do ano passado: Haiti e Chile tremendo, Paquistão e Austrália alagados, o calor matando na Rússia, para ficar só com os piores. Mas a mudança climática não tem nada a ver com o que a CNN e seus apresentadores nervosos trazem diretamente do Japão para o nosso confortável assombro. Diz o vizinho (certamente um vizinho diz isso) que essa história de aquecimento global nada tem a ver com ele e com o seu Hummer. O Haiti não é aqui, é no Haiti mesmo, e o Japão é uma nação insular no Pacífico, onde as pessoas são todas iguais, comem arroz e falam uma língua incompreensível. Em inglês, a palavra casualty quer dizer: acidente, desastre; vítima de acidente; casualidade. Certo?

Na parede, a onda de Kanagawa, imobilizada, e na tevê a onda de Sendai, imobilizada em sua repetição, carregando dezenas, centenas, milhares de vezes a mesma casa. E você assiste, e assiste de novo, e onde estão os homenzinhos que remavam nos barcos de Hokusai depois do bote das águas? Viraram números? Casualties?

Fique conosco, diz o apresentador. Já voltamos com mais breaking news sobre a tragédia no Japão.

A vinheta, o intervalo, e então surgem outras casas: íntegras, secas, tranquilas. A propaganda da empresa de segurança anuncia um sistema complexo e sofisticado para residências ¿ toda uma rede de câmeras, teclados digitais, alarmes e controle remoto destinados a proteger de modo eficiente ¿tudo aquilo que você mais ama, 24 horas por dia, 7 dias por semana.¿

Numa dessas casas, é até possível que alguém tenha pendurado uma reprodução de um quadro famoso, aquela gravura daquele japonês ¿ os nomes japoneses são todos iguais. Mas a grande onda de Kanagawa não era um tsunami, uma ¿onda do porto¿: era um okinami, uma ¿onda do mar aberto.¿ A onda de Hokusai é arte. Vai bem com segurança doméstica, e com tudo aquilo que você mais ama. Enquanto for possível, pelo menos.

ADRIANA LISBOA é escritora, autora de ¿Rakushisha¿, romance inspirado na poesia de Bashô, e ¿Contos populares japoneses¿ (ambos pela Rocco), entre outros livros. Esteve em Kioto em 2006, como bolsista da Fundação Japão