Título: Um evento imprevisível
Autor: Sarmento, Claudia
Fonte: O Globo, 20/03/2011, O Mundo, p. 50

Eri e Tetsuo nunca seriam nem namorados, nem amantes, nem nada. Tinham se acostumado com os desencontros, e os poucos beijos que haviam trocado, em noites divertidas, alcoólicas e até românticas eram lembranças boas, mas ambos concordavam que nada daquilo nunca levaria a lugar nenhum. A razão disso não era escassez de amor ou de desejo. Era uma estranha falta de sincronismo entre suas neuroses, nada mais. Mas isso não é pouco, e eles já consideravam essa assincronia um fato, uma lei natural, que não impedia, no entanto, que se gostassem e estivessem sempre juntos.

Uma ou duas horas antes do terremoto, Eri batia à porta do apartamento de Tetsuo. Ia devolver-lhe um livro, ela estava com pressa. Tetsuo abriu a porta já perguntando se Eri tinha mesmo certeza de que não precisava mais do livro, que ela pegara dele sem pedir e agora devolvia sem que ele lhe cobrasse. Ele era o mesmo Tetsuo de sempre e ela a mesma Eri, mas então por que ela o beija, de repente, daquela maneira?

Ela mesma não saberia dizer. Estava tão surpresa quanto ele com o beijo que acabara de dar. As costas apoiadas na porta, o livro na mão, Tetsuo observa que ¿nós estamos nos beijando e estamos sóbrios¿. ¿Pois é¿, ela responde, recompondo-se, e completando, como se nada tivesse acontecido, ¿tenho que ir. O livro é esse mesmo, não é?¿ Sem deixar que ele responda, ela o beija de novo.

O segundo beijo é mais demorado. Quando param de se beijar, afastam-se um do outro uns poucos centímetros. Abraçando-a, ele tenta conduzi-la para dentro do apartamento. Ela repete o ¿tenho que ir¿, sinalizando para o corredor do prédio. No impasse, ficam ali, debaixo da porta.

¿Podemos também ficar aqui, debaixo da porta¿, diz ele. ¿É o lugar mais seguro em caso de terremoto¿, ela retruca, porque é bem esse o senso de humor deles. Riem, ficam juntos ali e se abraçam. Não entendem o que está acontecendo e não fazem questão nenhuma de entender. Alternam beijos com a enumeração cuidadosa dos procedimentos de emergência em caso de terremoto que aprenderam na escola, no trabalho, a vida toda. ¿Não pegar elevador¿. Um beijo. ¿Afastar-se de vidros¿. Outro beijo.

Quarenta minutos antes do terremoto, Eri e Tetsuo estão no quarto dele, muito pequeno e quase todo ocupado por uma cama de casal de estilo ocidental. Estão nus e investigam o corpo um do outro (o umbigo dela, os dedos dele). ¿Por que não fizemos isso antes?¿, ambos se perguntam, e é uma pergunta sincera, para a qual não têm resposta.

O fato é, e disso sei eu, que sou o narrador deste conto, que eles sempre se amaram e que nesse momento, incomum como um sismo de quase nove graus na escala Richter, eles têm a sorte de descobrir isso simultaneamente e da melhor maneira possível: cometem esta que é a menos praticada das perversões, o sexo com amor. Não lhes pesa o passado, não lhes pesa um futuro.

O terremoto os surpreende buscando o melhor encaixe dos seus corpos. ¿Levanta essa perna¿. ¿Assim?¿. ¿Assim¿. Contrariando tudo que aprenderam sobre emergências, não interrompem o que estão fazendo quando a terra treme, o prédio todo treme, a cama sacode mais do que já vinha sacudindo.

Construído segundo normas estritas, o prédio ficou de pé depois do tremor, assim como a maior parte da cidade, que fica distante do mar. Dentro do quarto minúsculo de Tetsuo, o susto pelo terremoto e os tremores depois do sexo se misturam e não dá para saber quanto há de um e de outro na respiração acelerada, nos corações disparados do casal. Ele nota que ela tem brevíssimos espasmos, como choques elétricos, depois que goza. Ela vê como ele infla o peito em aspirações amplas, como um afogado. Réplicas, ondas de choque secundárias.

Eles não se dão conta quando a luz é cortada. Menos ainda quando o telefone para de funcionar. Não é o primeiro terremoto de suas vidas, e eles ainda não sabem que é o pior de todos, por isso não saem da cama, não ligam a tevê. É extraordinário o suficiente o que se passa ali.

Alguma hora eles vão precisar sair daquela cama e vão descobrir o que se passou. Veem-se então diante do imenso desastre. Retomam seus trabalho, colaboram no esforço coletivo. Não param para temer nada, porque não é assim que eles, japoneses, funcionam. É preciso trabalhar também, com essa minúcia de japoneses, um no outro, por isso exaustos ao fim de cada dia retomam a investigação mútua (o pescoço dele, o tornozelo dela) sem se preocuparem que nunca, nunca, viriam a ser, um dia, namorados, amantes, nada.

Ninguém sabe por que Eri beijou Tetsuo exatamente naquele dia e naquela hora e daquela maneira e tampouco sabe-se porque aquele dia foi diferente de tudo que eles viveram antes. Ela não sabe, ele não sabe, e nem sabe este narrador, que admite encontrar aqui o limite da sua onisciência. Tanto quanto não se preveem terremotos, não se explicam certos gestos.

DAVID FRANÇA MENDES é cineasta. Dirigiu o longa-metragem ¿Um romance de geração¿ (2009) e é o roteirista de ¿Corações sujos¿, previsto para 2011