Título: Não baixar a guarda na Ficha Limpa
Autor:
Fonte: O Globo, 25/03/2011, Opinião, p. 6

O desempate no julgamento no Supremo Tribunal da questão do prazo de validade da Lei da Ficha Limpa, a favor do ficha-suja eleito em 2010, se enquadra à perfeição na imagem da visão do copo meio cheio e do copo meio vazio.

Quem preferir a primeira angulação ressaltará o efetivo avanço conseguido ao se ter, afinal, uma legislação para impedir donos de prontuários policiais e processos na Justiça de se candidatar, sem a necessidade de condenação em última instância.

Pela visão do copo meio vazio, há a frustração de a tese a favor de a lei produzir efeitos na atual legislatura ter obtido o apoio de cinco ministros do STF, mas perder por um voto, proferido pelo recém-empossado Luiz Fux.

A rigor, cabem as duas sensações. A de vitória, conquistada por uma histórica mobilização de setores organizados da sociedade, sem atropelar o estado de direito; e de relativa derrota, diante da possibilidade perdida de, desde já, eliminar-se da vida política símbolos de malfeitorias com dinheiro público.

Paciência. Vale o bordão: sentença judicial não se discute, cumpre-se. Mas o assunto não está encerrado. Venceu o entendimento de que pesa mais o artigo 16 da Constituição, segundo o qual não tem validade qualquer alteração em normas eleitorais aprovada a menos de um ano das urnas - caso da Ficha Limpa -, do que o 14 , em que, entre as précondições para o registro de candidatura, listam-se a "moralidade" e a "vida pregressa" do aspirante a um cargo eletivo.

Em votos na sessão decisiva, quarta-feira, de julgamento do recurso do deputado estadual mineiro Leonídio Bouças (PMDB), considerado pela Justiça eleitoral um legítimo ficha-suja, por improbidade administrativa, foram registrados discursos sobre a necessidade de a Justiça não se curvar à pressão "das ruas". Não deve mesmo, assim como não pode, sob qualquer hipótese, ajoelhar-se diante de poderosos. Reconheça-se, porém, que o Supremo tem dado positivas demonstrações de independência, como deve ser.

A questão é outra. Trata-se de não apenas a Justiça não permitir retrocesso no que já está sacramentado pelo Supremo, como não se deve desmobilizar o movimento pela ética na política. É imperioso vigiar a intocabilidade da Lei da Ficha Limpa.

Políticos não costumam apenas ser assessorados por competentes bancas de advocacia, mas também ostentam grande capacidade criativa para contornar leis. O exemplo do momento é a acrobacia em curso praticada por Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo, e grupo, para, com a criação de um novo partido, o PSD, abandonarem o DEM e outras legendas, longe do alcance das normas sobre a fidelidade partidária.

Kassab, em particular, na condição de aliado de tucanos e demista não tem chances de disputar o governo paulista. A pirueta é fundar um partido - caso em que a legislação permite a troca de legenda -, aproximar-se de Brasília e ser uma alternativa de aliança para o PT em São Paulo.

Tamanha capacidade de inovação deverá estar a serviço de tentativas de desmonte da Lei da Ficha Limpa antes de 2012. Eis por que não pode haver desmobilização.