Título: Vai passar?
Autor: Feuerwerker, Alon
Fonte: Correio Braziliense, 26/07/2009, Política, p. 4

Infelizmente, nossa pátria-mãe está acostumada a dormir tão distraída, sem muitas vezes perceber quando é subtraída, por mais tenebrosas que sejam as transações.

Tem algo que não fecha no debate em torno do pré-sal. O governo deseja criar uma nova estatal, com o argumento de que a Petrobras não é 100% do Estado brasileiro. Parece patriótico. Mas a nova empresa seria desprovida de capacidade operacional. Teria portanto que ir ao mercado para cumprir sua missão. Ou não. Pois ela poderia conceder a exploração à Petrobras. Ora, então por que não deixar a própria Petrobras cuidando da coisa toda, já que os seus acionistas privados acabariam de qualquer modo se beneficiando do modelo? Qual o sentido de criar mais um guichê?

Se Getúlio Vargas tivesse ido pelo caminho hoje acenado por Luiz Inácio Lula da Silva, certamente sua vida teria sido bem mais fácil, e talvez não terminasse como terminou. Vargas poderia ter criado a Petrobras, mas sem a atribuição de explorar petróleo. Apenas com a tarefa de coordenar a exploração por terceiros. Engenhoso. Teria argumentos para alimentar o discurso eleitoral nacionalista e evitaria chocar-se com os donos do mundo. Em vez de se matar em palácio, talvez se aposentasse como secretário-geral da ONU. Ou cônsul honorário dos Estados Unidos.

Mas Vargas sabia que proclamar o monopólio estatal sem criar as condições para implementá-lo seria um gesto vazio. O caudilho era homem de ação. Até demais. Junto com Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel, forma na História do Brasil o tripé de presidentes que evitaram a nossa transformação numa Argentina. Os hermanos não devem se ofender, pois imagino que até eles hoje em dia lamentem a desindustrialização sistemática, promovida especialmente pelos militares. Graças a Deus, nossas Forças Armadas foram pelo caminho oposto quando tiveram o poder.

É curioso que o governo federal proclame a CPI da Petrobras como ¿a grande ameaça para enfraquecer a empresa e facilitar a privatização¿, enquanto ele próprio está para debilitar estrategicamente a empresa. As crianças se entretêm no quintal com o brinquedo novo (combater a CPI) e os adultos conversam na sala sobre os assuntos reservados às gentes grandes.

E que gentes grandes! Até por isso, conviria tratar o tema com mais cautela. Afinal, estamos em véspera de eleição. Não é razoável decidir com pressa excessiva, bem agora que o Executivo anda naturalmente mais permeável às pressões dos grandes financiadores de campanha, dos caciques do Congresso Nacional e dos donos de tempo político grátis no rádio e na televisão.

Volta e meia comparece ao noticiário a tese de que a relação entre o PMDB e o governo poderia estremecer por causa da crise que vem engolindo o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). Duvido. Escrevi aqui há exatamente três semanas que o presidente do partido e da Câmara, Michel Temer (SP), não derramaria uma lágrima pelo colega senador, não comprometeria a bela aliança com Lula e o PT por causa de algo quantitativamente menor, como é a guerra política no Senado.

Menor? Só olhar para o que está em jogo, por exemplo, no pré-sal. A nova estatal desenhada no Planalto é objeto intenso de desejo no PMDB. Nos vários grupos do partido, sem exceção. Gente cuja queixa é a ¿falta de cintura¿ da chefe da Casa Civil e candidata de Lula à sucessão, Dilma Rousseff. Que elogio! Espera-se que, nesse particular, continue faltando flexibilidade à cintura da ministra. Ela só terá a ganhar se assim acontecer. E o país agradecerá.

O governo está obrigado a provar que o discurso nacionalista em torno do pré-sal não é só um biombo para ocultar negócios que não resistiriam à luz do dia. Não basta costurar um texto em palácio e botar a turma para gritar na rua que ¿o pré-sal é nosso¿. É preciso explicar de quem se trata quando se fala em ¿nosso¿.

Nossa política é useira e vezeira num certo tipo de malandragem. O primeiro programa de estabilização fiscal na época do Plano Real recebeu o pomposo nome de Fundo Social de Emergência. ¿Social¿ era o rótulo ideal para vender a impopular austeridade. Agora, um nacionalismo de fachada é o candidato a virar muleta. Infelizmente, nossa pátria-mãe está acostumada a dormir tão distraída, sem muitas vezes perceber quando é subtraída, por mais tenebrosas que sejam as transações. Com a licença do poeta.