Título: Uma sangria a conta-gotas com o dinheiro da Saúde
Autor: Maltchik, Roberto
Fonte: O Globo, 27/03/2011, O País, p. 3

FRAUDES NO SUS

Criado em 1990 para assegurar o pleno atendimento médico-hospitalar à população, o Sistema Único de Saúde (SUS) transformou-se no tesouro mais nobre e vulnerável do orçamento público brasileiro. Recursos bilionários e pulverizados são desviados de hospitais, clínicas credenciadas e unidades de saúde. Investigações administrativas do Ministério da Saúde e da Controladoria Geral da União, concluídas entre 2007 e 2010, apontaram desvios de R$662,2 milhões no Fundo Nacional de Saúde. O prejuízo pode ser bem maior, pois somente 2,5% das chamadas transferências fundo a fundo são fiscalizadas, de acordo com a CGU.

Só as irregularidades já atestadas financiariam a construção de 1.439 unidades básicas de saúde e de 24 Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs), além de pagar os salários de um ano inteiro, com 13º, de 1.156 equipes do Saúde da Família. Em procedimentos, equivaleria a 1,21 milhão de cesarianas ou 1,48 milhão de cirurgias de hérnia.

O volume de dinheiro fiscalizado contrasta com a quantidade de desvios impunes. As fraudes incluem compras e pagamentos irregulares, superfaturamentos, desperdício com construção de hospitais que não funcionam e até contratação de um mesmo médico para 17 lugares ao mesmo tempo. Nos quatro anos analisados, o prejuízo foi de R$223,07 milhões.

Em Goiás, leitos não passam pela porta

Para ter uma ideia dessa sangria a conta-gotas, O GLOBO recolheu detalhes de auditorias em vários estados e visitou quatro cidades. Em Aparecida de Goiânia (GO), na Região Metropolitana, as 17 novas enfermarias do Hospital de Urgência custaram R$1,5 milhão, ficaram prontas em dezembro, mas não foram entregues pela construtora. Os 38 leitos chegaram no mesmo mês, mas permanecem no almoxarifado, entulhados e se deteriorando na chuva. A construtora se esqueceu da saída de emergência, e os leitos não passam pelas portas dos quartos.

--- Não ficou lugar para saída de incêndio, banho de sol. Em duas enfermarias, a cama não passa. O projeto não foi bem feito, não -- conta um dos funcionários do depósito.

Resta um cantinho no corredor abarrotado para a aposentada Marinalva Siqueira dos Santos, que aguardava há quase 24 horas na fila por um exame de endoscopia.

- Passei a noite toda vomitando sangue. Sangue coalhado, com um monte de gente doente - lamenta.

O secretário de Saúde de Goiás, Antonio Faleiros Filho, diz que os problemas são da gestão passada e que, agora, o prazo de entrega é fim de abril.

Há uma semana, O GLOBO encontrou no município de Picos, o terceiro maior do Piauí, descontrole generalizado do dinheiro da saúde, sem punição. A cidade tem 71 mil habitantes, mas é um polo regional de atendimento do SUS para 500 mil pessoas de 60 cidades. Não há neurocirurgião ou leito de UTI. A penúria faz com que as cenas de horror se repitam no único hospital de grande porte, o Justino Luz. Osmar Araújo de Almeida acabara de sofrer um acidente de trânsito, mas, sem socorrista, entrou sangrando e agonizando recepção adentro. Teve que aguardar na fila, junto com crianças gripadas e idosos com febre.

- Parece que o médico tá no almoço. Fica assim. Assim que vai - balbuciou o resignado acidentado.

Picos já passou por três auditorias no último ano, mas nenhuma providência foi adotada. Segundo os auditores, são tantas suspeitas de fraude que é impossível assegurar a real destinação de cerca de 40% dos R$29.229.484,56 transferidos pela União à prefeitura, em 2010.

Na cidade, o SUS pagou, em 2009, 11.902 exames auditivos, bem mais do que os 8.641 de Teresina, com seus mais de 800 mil habitantes e referência exclusiva de atendimento médico no Piauí e em parte do Maranhão. No mesmo ano, a prefeitura contratou R$10,6 milhões em consultas, internações e exames especializados sem contratos, nem licitações. Entre janeiro de 2009 e junho de 2010, pagou R$228,8 mil em 12.933 diárias a duas pensões de Teresina, supostamente para abrigar pessoas carentes, cujos nomes até hoje não são conhecidos.

Caso emblemático é o de uma clínica de reabilitação suspeita de fraudar documentos e cobrar procedimentos que não fez, com prejuízo ao SUS de pelo menos R$536 mil. O Ministério da Saúde conhece o caso desde 2010, mas O GLOBO verificou que a Clínica Santa Ana continua sobrevivendo exclusivamente às custas do SUS e continua prestando serviços sem contrato com a prefeitura, como prestadora de serviço de alta complexidade.

Ano passado, Picos teve desabastecimento de mais de 50% nos itens da Farmácia Básica. A prefeitura não presta contas ao Conselho Municipal de Saúde, como manda a lei. A presidente do conselho é a tesoureira da Secretaria de Saúde, Geovana Luz.

- Aqui, a saúde vai bem - diz ela, representante do único órgão que deveria monitorar como o município gasta o dinheiro do SUS.

Por duas semanas, o jornal procurou a prefeitura de Picos - pessoalmente, por e-mail e por telefone -, mas não obteve resposta.