Título: No diário de Sarney, a culpa foi sempre dos outros
Autor: Lima, Maria ; Fernandes, Diana
Fonte: O Globo, 27/03/2011, O País, p. 12

BRASÍLIA. Fortaleza que resiste nos centros de decisão do cenário político há 50 anos, como é apresentado na biografia autorizada lançada esta semana, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), se revela um político e um ser humano atormentado pela depressão crônica, considera que foi um presidente da República fraco, que fez um governo marcado por erros e fracassos, e que, na maioria do tempo, não sabia o que estava se passando. A maior fonte de pesquisa da jornalista Regina Echeverria, autora de "Sarney, a biografia", é o diário em que ele faz suas catarses, com desabafos sobre seus medos, erros, fracassos e traições políticas.

Em depoimentos na primeira pessoa, ele relembra que entrou em pânico quando foi informado de que teria de assumir a Presidência no lugar de Tancredo Neves, em 1985. Sabia que não tinha legitimidade política e seria uma decepção para o povo que idolatrava o presidente de fato. Era, naquele momento, uma figura menor, que sequer tinha sido consultado sobre o Ministério que Tancredo anunciara na véspera de ser internado.

Nos anos que se seguiram, ainda permaneceu meio que alheio a muito do que se passava na cena política e econômica de Brasília. Cita erros e fracassos de seu governo, mas sempre culpa alguém ou diz que não sabia.

Conta que, pouco mais de três meses após o lançamento do Plano Cruzado - que o levou do céu ao inferno -, quando o governo enfrentava problemas de desabastecimento e greves, convocou reunião supersecreta da equipe econômica, comandada pelo ministro do Planejamento, João Sayad, na longínqua Carajás.

Queria, longe da imprensa, discutir saídas para o Cruzado. A reunião vazou, foi um desastre, e Sarney só ficou sabendo da gravidade da situação quando foi ao banheiro e ouviu uma conversa entre Sayad e o então presidente do IBGE, Edmar Bacha:

- O Plano foi para o espaço! - confessou Bacha.

Além do Plano Cruzado e do Cruzado I, Sarney lista vários "maiores erros" de seu governo: a escolha de Marco Maciel para chefiar a Casa Civil, o calote no pagamento da dívida junto ao FMI e até a briga pelo mandato de cinco anos.

Na revisão de sua história, reserva críticas aos presidentes que o sucederam e só alivia Itamar Franco. As maiores mágoas são de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Nunca perdoou o tucano pela operação da PF que descobriu uma dinheirama na empresa Lunus, enterrando a campanha da filha Roseana à Presidência, em 2002.

Pesou a pena nos escritos sobre Lula também. Diz que em 1989, quando os 21 candidatos se voltaram contra seu governo, votou em branco no segundo turno entre Collor e Lula. Collor, porque "era um capitalista de Arapiraca". Lula, porque era "a velharia ideológica, um marxista caribenho sem ideias próprias e sem base filosófica".

Sobre a crise vivida pelo Senado em 2009, logo após ele assumir mais uma vez o comando da Casa, Sarney apresenta sua versão dos fatos - ou "pseudofatos", como diz no livro. Quanto às centenas de atos secretos do Senado, muitos editados com nomeações de parentes do próprio Sarney, ele diz: "Realmente fui alvo de uma grande injustiça, quando a imprensa quis associar-me aos tais atos secretos. Primeiro, foi a Fundação Getulio Vargas quem os descobriu e foi contratada por mim. Anulei todos eles, e o percentual dos meus mandatos foi de 1,81%".

Num dos comentários que faz da crise no livro, Sarney fala do que considera o grande erro da oposição no episódio: "Foram ineptos. Usaram a estratégia de guerrilha atingindo a todos com pseudofatos sem interesse público e, assim, construíram a derrota do seu candidato".

O livro traz a versão dele para fatos históricos como:

DOENÇA DE TANCREDO: No capítulo sobre eleição do Colégio Eleitoral, posse e Nova República, Sarney expõe longamente sua total ignorância sobre o que se passava com a saúde de Tancredo às vésperas da posse, no dia 15 de março. Teve a última conversa com o presidente eleito no dia 14, de manhã. De nada desconfiou e de nada foi informado. Somente na tarde daquele dia foi avisado por um dos médicos da gravidade do caso. No fim da tarde, Sarney viu Tancredo numa missa, da qual ele saiu às pressas sem falar com ninguém. Por volta das 21h, o vice foi avisado de que Tancredo estava no hospital e seria operado de imediato.

POSSE, RESISTÊNCIA E DEPRESSÃO: Sarney relutou muito para tomar posse, com a alegação de que o povo esperava Tancredo e que ele seria uma grande decepção. Nas longas horas de apreensão, muitas consultas à Constituição e negociações políticas. O que mais crescia era a depressão de Sarney, uma doença que ele tentava dominar desde 1982 e que era mantida em segredo na família. "Dentro de mim crescia um grande temor. (..) Ainda estava deprimido, maximizando todos os acontecimentos, construindo hipóteses trágicas, tendo uma leitura negativa de tudo o que acontecia comigo", lembra Sarney: "Era uma solidão que não passava, uma dor insidiosa na alma que me levava a pensar recorrentemente na morte e nas fontes da vida".

PLANO CRUZADO: Na reunião de Carajás, Sarney soube, por acaso, que seu plano econômico, que tinha como eixo o congelamento de preços e salários por um ano, fracassara. Com esse plano, Sarney foi do céu ao inferno. Sua popularidade chegou na casa dos 80%. Menos de três meses depois, houve greves e protestos pelo congelamento dos salários. Sarney culpava PT, PDT e CUT pelas manifestações. Num intervalo da reunião, como conta no livro, Sarney flagrou, no banheiro, uma conversa entre Sayad e o então presidente do IBGE, Edmar Bacha. "O plano foi para o espaço" - disse Bacha. Há quem diga que ele teria ouvido Bacha falando mal dele. Mas isso ninguém confirma nem está no livro de Sarney. Logo depois veio o Cruzado II, que acabou com o congelamento e autorizou altos reajustes para a gasolina apenas seis dias depois da eleição vitoriosa do PMDB. Mais um erro admitido por Sarney no livro, mas que ele divide com seus ex-auxiliares: "O maior erro que cometi foi o Cruzado II . Eu preferia ter cortado a minha mão a ter assinado aquilo. Fiz porque acreditei neles".

OUTRO ERRO: MORATÓRIA: Com a economia em frangalhos, no início de 1987, Sarney decretou o calote da dívida junto ao FMI por tempo indeterminado. Um ano depois, reconheceu que a moratória foi o maior erro de seu governo. Mais uma vez, diz que foi induzido ao erro pela equipe econômica.

O CHEFE DO SNI: Durante seu isolamento no Planalto, e diante das dificuldades, Sarney gostava de dizer que tinha o apoio das Forças Armadas. Mas só depois que deixou o governo ficou sabendo que um dos seus mais fiéis escudeiros, o então chefe do SNI, general Ivan de Souza Mendes, no passado havia feito um dossiê com acusações envolvendo ele e pessoas de sua família. O relatório foi entregue a Ernesto Geisel em 1970, mas o então presidente da Petrobras não levou adiante investigações que poderiam complicar a vida de Sarney e até cassar-lhe o mandato de senador. No dossiê, o general dizia que Sarney tinha um apartamento cativo no Hotel Glória, mandava os filhos estudarem no exterior e que sua suplência de deputado era o resultado de uma fraude comandada por ele mesmo. "Se a gente conseguisse provar esse troço todo e enfiasse um Ato 5 em cima dele, hein?", teria dito Geisel sobre a carta do general. "Eu dormia com uma cascavel e não sabia. O que se depreende do documento é o caráter do general Ivan, que, tendo feito tudo isso contra mim, passou cinco anos como chefe do SNI ao meu lado. (...) Se eu fosse o que ele escreveu, jamais deveria ter trabalhado comigo. Foi uma grande decepção quando tive conhecimento dessa carta, pois sempre gostei e tive confiança nele", comenta Sarney.

A BATALHA DOS 5 ANOS: Sarney entrou em confronto direto com a Constituinte até a promulgação da Constituição em 88. Seu maior embate foi para esticar o mandato para cinco anos. Tancredo havia se comprometido a realizar eleições diretas depois de quatro anos de mandato, mas a legislação ainda previa o mandato de seis anos. "No começo eu imaginava saltar fora já em 86. Mas aí percebi que seria um salto no escuro e recuei. O país não estava preparado, os militares ainda se acomodavam, a situação não estava consolidada para a realização das eleições diretas. Havia risco de retrocesso". Sobre notícias de que dava concessões de rádios em troca de apoio aos cinco anos, diz Sarney em suas memórias: "Não apareceu ninguém que dissesse: ganhei essa rádio para votar no Sarney. Havia intermediação política, claro, mas nunca negociada pela duração do mandato, até porque desde o início eu tinha delegado isso ao Antonio Carlos (Magalhães, ministro das Comunicações). O Collor e o Fernando Henrique distribuíram 10 vezes mais".

CULPA DO MOREIRA: Iniciou-se o movimento "Xô Sarney". Numa viagem ao Rio, o ônibus em que viajava foi apedrejado, e um dos manifestantes deu um golpe de picareta no vidro da frente, rente ao lugar onde estava sentado Sarney. Mas o então presidente, em suas memórias, não atribui o picaretaço à sua impopularidade, mas sim à do então governador Moreira Franco. "O governador Moreira Franco era muito impopular, e o Brizola montou uma manifestação contra ele. A segurança não detectou aquilo e me expôs de maneira brutal. Minha posição foi de coragem, de aguentar e dizer: não vou sair daqui, não vou correr, não vou sair pelo fundo, é melhor sair morto do que isso".

DESAFETOS: Em suas memórias, Sarney pesa nas críticas a ex-aliados. Ao longo do livro, vai revelando posição ambígua em relação a Ulysses. Reconhece que não tinha legitimidade política como presidente e que tinha tudo para não terminar o mandato. E culpa Ulysses pelo fracasso de seu governo. "Naquela fase, apoiei-me muito em Ulysses Guimarães. Ele era um ícone da resistência". Mas, entre um elogio e outro, a biografia autorizada de Sarney solta mais uma alfinetada. Um exemplo: "Eu o ouvia em todas as decisões e nomeações". No parágrafo seguinte, entra uma fala de Jorge Murad, genro e secretário particular de Sarney no Planalto: "Presenciei algumas discussões mais ríspidas, em conversas íntimas no Alvorada. O que mais deixava Sarney passado era a fome insaciável do Ulysses em relação aos cargos, dos maiores aos menores".

EMBATES COM ULYSSES: Em seu diário, pouco antes de entregar o governo a Fernando Collor, Sarney registrou um desabafo raivoso contra Ulysses: "Recordo os erros. O meu isolamento. Ter visto a História passar e não cavalgá-la por delicadeza. Ulysses foi o grande entrave. Não tem grandeza nem espírito público. É um político menor, que tem o gosto da arte política, puro gosto do jogo, nada mais. É o responsável pela situação que vivemos".

FIM DE MANDATO: Aprovados os cinco anos de mandato para Sarney, a primeira eleição direta foi marcada para outubro de 1989. Sarney viveu o inferno no último ano de governo, pelo qual tanto brigou. Foi o alvo de ataques dos 21 candidatos a sua cadeira no Planalto. "O meu partido me traiu. Ulysses, todos eles!" Em outubro, a cinco meses de passar o cargo ao sucessor, Sarney escreveu outro desabafo em seu diário durante viagem aos Estados Unidos: "Hoje é domingo, para mim um dia particularmente muito triste. Chove. Estou meio deprimido. Uma profunda frustração com tudo. A imprensa continua cruel. Não sei a que devo tanto rancor". Os maiores ataques durante a campanha presidencial, entretanto, partiram de Fernando Collor, candidato do nanico PRN. Chamou Sarney de "corrupto, incompetente e safado" e chegou a dizer que mandaria prendê-lo e arrancar o seu bigode. Hoje são parceiros, e Collor compareceu ao lançamento desta biografia, junto com Sarney e o ex-presidente Itamar Franco.

LULA, O MARXISTA CARIBENHO: Na época, quando Lula foi para o segundo turno contra Collor, em 1989, Sarney fez os mais jocosos comentários sobre o desempenho do petista, e hoje aliado, em seu diário. Previu que Collor ganharia, porque Lula repesentava o radicalismo, mas faria aproximação com a direita e Collor, com a esquerda. "Lula é a velharia ideológica. O partido marxista sectário e caribenho. É um anacronismo. Sua sedução permanente é a Sierra Maestra. Não faz porque não pode", escreveu Sarney, completando que Lula era um "marxista caribenho sem ideias, frentista, assembleísta, sem base filosófica de Marx, disputando com um capitalista de Arapiraca". Sarney diz que votou em branco.

IMPEACHMENT: Sarney nunca esqueceu as bravatas de Collor na campanha. Registra no livro um comentário da mãe, dona Kiola, diante da TV, quando assistia aos ataques do alagoano: - Esse menino ainda vai pagar pela língua! Depois de entregar o mandato, foi para o Maranhão e não conseguiu se afastar da política. Quatro meses depois, tentou disputar o Senado, mas o PMDB lhe negou a vaga. Transferiu o título para o Amapá e se elegeu. Acabou, junto com a filha deputada, Roseana, coordenando o impeachment de seu desafeto. Apoiou o governo de Itamar e, em 1993, influenciado pelas previsões do pai de santo Bita do Barão, famoso pelas ligações com o hoje senador, ensaiou uma volta ao Planalto. Como sempre, negava, mas nos bastidores articulava. Foi atropelado por Itamar, que lançou a candidatura imbatível do executor do Plano Real, o então ministro Fernando Henrique Cardoso. E o PMDB lançou Orestes Quércia.

FH, ROSEANA E LUNUS: Uma das maiores mágoas que Sarney guarda até hoje de Fernando Henrique e que o levou a romper com o governo tucano foi a operação da PF na Lunus. Ele ligou para Fernando Henrique para tomar satisfação. O tucano disse que não sabia de nada e que presidente não tem obrigação de saber de tudo. Sarney retrucou: "(...) Eu fui presidente, Fernando, eu sei que uma coisa dessas não acontece sem o presidente saber". "Mas você foi presidente no tempo da ditadura", teria dito o tucano. "E você foi o líder da ditadura", respondeu Sarney, batendo o telefone.

LULA E MENSALÃO: Sobre o apoio ao candidato do PT, em 2002, e depois ao governo, Sarney conta: "Lula veio à minha casa duas vezes, e o Zé Dirceu não sei quantas. Eles vieram me convidar, pedir meu apoio. Eu não fui atrás de ninguém". No auge do mensalão do PT, em 2005, Sarney ficou 90 dias em silêncio. Decidiu fazer longo discurso em defesa de Lula, com o mesmo argumento petista de que o problema estava no sistema político. Apanhou muito da oposição, mas ficou mais forte ainda no Planalto. O esforço pela reeleição de Lula foi além do seu partido. Depois do primeiro turno da disputa entre Lula e Alckmin, foi dada a ele outra tarefa: fazer ACM parar com os ataques ao goveno Lula. Sarney foi à casa do amigo "pedir que ele controlasse a língua e parasse de fazer acusações de corrupção contra o governo; do contrário, perderia trânsito no Palácio do Planalto". "ACM era um homem que não conhecia a neutralidade, ia da ternura à explosão e tinha a incrível capacidade de transformar amigos em inimigos e inimigos em amigos", diz Sarney no livro.

CRISE NO SENADO: Em 2009, com Sarney na presidência da Casa, o Senado viveu sua pior crise, com denúncias sobre a existência de 136 diretorias, recebimento indevido de auxílio-moradia, nepotismo e, principalmente, pela edição de centenas de atos secretos, inclusive acobertando nomeações de parentes. Descobriu-se que foram abrigados em gabinetes de vários senadores o namorado da neta, o neto, sobrinha e outros parentes de Sarney. Ele negou responsabilidade sobre os atos. Lula o defendeu e criticou o "denuncismo da imprensa". A oposição foi em peso à tribuna pedir seu afastamento, mas não deu em nada. "Jamais o Senado me afastaria, porque não havia motivo, nenhuma acusação ou fato de ordem pessoal que me fosse atribuída. Era uma acusação política cruzada com ressentimentos pessoais", diz, no livro, acusando o senador Tião Viana (PT-AC), que disputou com ele a presidência, da autoria de um dossiê com essas denúncias.