Título: Morte e beleza
Autor: Horta, Luis Paulo
Fonte: O Globo, 27/03/2011, Opinião, p. 7

A natureza parece cruel com alguns povos ¿ como o japonês, agora envolvido num desastre de grandes proporções. No Japão, entretanto, essa luta contra os elementos não impediu (ou terá até provocado) o surgimento de uma civilização extraordinária, que, mais uma vez, excita a nossa admiração: não se ouve falar em saques entre as ruínas da tsunami; as pessoas comportam-se com um estoicismo notável; nas usinas a ponto de explodir, kamikases modernos põem suas vidas em jogo para tentar evitar o pior.

Parece existir, no Japão, uma dança ritual que mistura morte e beleza. O curioso é que não é uma experiência totalmente original. Já se disse da civilização japonesa que ela é "lunar", porque reflete muita coisa que vem de fora.

Seu grande modelo sempre foi a China ¿ o que é fácil de entender, sabendo-se que nunca houve uma civilização tão refinada como a da China antiga. O Japão importou os modelos chineses; copiou a belíssima escrita em ideogramas; mas a tudo o que importava aplicou a sua marca. Assim foi com o Zen, que começou na India, desenvolveu-se na China como Ch´an, mas no Japão é que encontrou a sua forma definitiva, como uma lâmina de aço polido.

Na nossa linguagem corrente, "ser zen" é, como diz a gíria, "não esquentar", "levar as coisas numa boa". Mas isso, no Zen, é o resultado final, quando o discipulo foi além do mundo das aparências e encontrou a realidade definitiva. O que só acontece depois de um exercício, de uma disciplina, perto da qual a ascese cristã é um jogo de crianças.

O Zen chegou ao Japão por volta do século VIII, e foi penetrando pouco a pouco todas as manifestações da cultura. Do Zen surgiram a arte floral, a cerimônia do chá, a escola dos samurais. Em tudo isso, há como que uma perfeição da forma que se confunde com a superação das formas, com um "ir além", com a poesia mais refinada.

E assim vamos encontrando os paradoxos do Japão ¿ uma nação de guerreiros que produz poesia. Talvez não haja, em todo o mundo, um povo com o senso estético dos japoneses. Lafcadio Hearn, jornalista e escritor inglês que viveu no Japão no final do século XIX, dizia que, em qualquer grande cidade europeia, as áreas nobres podem ser muito belas; mas a beleza vai sumindo à medida que se caminha para os arrabaldes. Bem diferente do que acontece no Japão, onde a estética parece onipresente, no jarro de flores, no prato que se põe na mesa, na arquitetura leve que não ofende a natureza.

Esse povo de guerreiros tem o senso do transitório. Isso também faz parte da vivência poética: você vê o mundo, vê a perfeição das formas, e sente, ao mesmo tempo, que tudo está em perpétua transformação. É o sentimento da impermanência que vem diretamente do budismo. E isso só faz acentuar a beleza do grande bailado das coisas.

Mas como explicar que, ao mesmo tempo, a violência seja parte integrante desse caráter japonês ¿ como fica muito evidente na obra de um Yukio Mishima? O militarismo japonês misturou-se, nos anos 20, a uma onda de nacionalismo que produziu resultados comparáveis ao que aconteceu na Alemanha (sempre achei que os japoneses são os alemães do Oriente, misturando poesia com formalismo e explosões violentas). A grande crise econômica dos anos 30 pôs o Japão numa situação dramática, em que se morria de fome porque não havia mercado para os produtos nacionais. Os chefes militares fizeram o mesmo raciocínio que a liderança nazista: se o Japão era pequeno para alimentar o seu povo, por que não sair em busca do "lebensraum", de terras novas que estivessem nas mãos de gente mais fraca, menos resoluta? E assim o Japão invadiu a China, antes que começasse a II Guerra Mundial, e praticou ali atrocidades que em nada ficam a dever às do hitlerismo.

O resultado disso, depois de muito sangue derramado, foi o bombardeio atômico que arrasou Hiroshima e Nagasaki. Num dos últimos filmes de Kurosawa, a bomba aparece como um olho enorme, subindo no horizonte, inspecionando uma população aterrorizada.

Assim surgiu o Japão moderno, que, como a Alemanha, procurou no sucesso econômico o esquecimento dos males da guerra. Mas, nos dois casos, nota-se uma crise de civilização. São duas culturas que dormem, à espera do perdão e do esquecimento que vêm da passagem do tempo. LUIZ PAULO HORTA é jornalista.