Título: Uma boa iniciativa que não dará em nada
Autor: Abramo, Claudio Weber
Fonte: Correio Braziliense, 26/07/2009, Opinião, p. 21

Diretor executivo da Transparência Brasil

Uma das fraudes mais difíceis de coibir em contratações públicas é a da formação de cartéis em que os concorrentes dividem entre si um conjunto de contratos, acertando os preços que cada qual oferecerá nas respectivas licitações.

É o chamado carrossel: o contrato de hoje fica com A, o de amanhã com B, e o de depois de amanhã, com C. Uma medida na direção de reduzir a probabilidade de tais conluios acontecerem foi adotada no início deste mês pelo Ministério da Justiça, no âmbito da Secretaria de Direito Econômico (SDE).

Trata-se da Portaria nº 51/09, que lança Guia de Análise de Denúncias sobre Possíveis Infrações Concorrenciais em Licitações e o Modelo de Declaração de Elaboração Independente de Proposta. O guia é apresentado como sugestão aos órgãos da administração federal.

A iniciativa é bastante interessante por dois motivos. O primeiro é que usa a legislação de proteção à concorrência para coibir desvios em licitações, algo que costuma ficar circunscrito à aplicação da lei de Licitações e Contratos (nº 8.666/93).

O segundo é que procura responsabilizar os executivos principais das empresas por eventuais conluios acertados por seus representantes comerciais. Funcionaria da seguinte maneira: dadas uma certa licitação e uma empresa que dela participa, o responsável legal pela empresa assina uma Declaração de Elaboração Independente de Proposta, ou seja, atesta que não participou de acertos com outros concorrentes.

A norma da SDE vem em resposta à recomendação da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a qual, por sua vez, é inspirada na legislação norte-americana. Com uma importante diferença. Nos EUA, a legislação define que, na hipótese de envolvimento de empresas em propinagem e fraudes, a cadeia de responsabilização pessoal chega até o topo da empresa, caso os seus responsáveis legais não consigam demonstrar que tomaram medidas para instruir todos os seus funcionários, fornecedores e agentes de que não devem fraudar licitações, não apenas dentro dos EUA, mas, também, no exterior.

Em outras palavras, a lei americana induz as empresas a disseminar amplamente que seus funcionários, colaboradores etc. não devem descumprir a lei. A legislação dos demais países da OCDE, inclusive o Brasil, não inclui esse encadeamento de responsabilidades, de modo que a recomendação do organismo não tem a mesma força da situação americana, que procura emular. Ainda assim, a iniciativa da Secretaria de Direito Econômico contribui positivamente para melhorar o ambiente em que se dão os negócios entre o setor público e o setor privado. Comprometer explicitamente os executivos principais das empresas pode ter o efeito de fazê-los pensar duas vezes antes de fechar os olhos para negociações que se deem mais abaixo na hierarquia.

No entanto, há aspectos do modelo de declaração da SDE que, em nome de maximizar o rigor, podem tornar o compromisso inaplicável. Um dos compromissos é que ¿a intenção de apresentar a proposta (...) não foi informada a, discutida com ou recebida de qualquer outro participante potencial ou de fato da (licitação), por qualquer meio ou por qualquer pessoa¿.

Ou seja, se o responsável legal por uma empresa se encontrar com outro num evento qualquer e perguntar ¿você vai participar da concorrência tal?¿ e o interlocutor responde ¿sim¿, isso já configuraria conluio. Ora, em qualquer mercado a ocorrência desse tipo de conversa é comum. Parece exagerado considerá-la como desvio de conduta.

Ainda assim, seria possível argumentar (ainda que correndo o risco da implausibilidade) que a existência de uma norma proibindo tais conversas tivesse o condão de, de fato, eliminá-las.

Resta ainda um problema insuperável. É comum que, de modo a conseguirem apresentar propostas em licitações, empresas se reúnam em consórcios. Para formar um consórcio, é inevitável conversar não apenas sobre a intenção de participar, como também sobre, pelo menos, alguns parâmetros de natureza econômica e financeira.

Digamos que duas empresas A e B que conversaram sobre a possibilidade de montar um consórcio não cheguem a acordo entre si, mas que formem outros consórcios, com outras empresas C e D. O fato de as duas empresas A e B terem conversado já configuraria conluio entre elas, conforme refletido na declaração concebida pela SDE.

Como é impossível montar um consórcio sem discutir o objeto e sem discutir questões econômicas e financeiras, o resultado é que dificilmente alguém se disporá a assinar o documento. Assim, a excelente iniciativa da SDE pode dar em nada. Nessas condições, seria melhor que os termos do documento fossem alterados.