Título: Hóspedes suspeitos
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 26/07/2009, Mundo, p. 22

Álvaro Uribe cede bases militares aos Estados Unidos. Hugo Chávez denuncia ¿plano de invasão¿ e promete reforçar defesa da Venezuela.

Bastaram pouco mais de 10 dias para que os progressos dos últimos anos na construção de um sistema sul-americano de segurança coletiva dessem lugar a mais um round de acusações e manifestações de desconfiança entre dois vizinhos que encarnam os extremos do espectro político no continente. Desde o início da semana passada, quando vieram a público os contornos de um acordo pelo qual os Estados Unidos utilizarão bases militares na Colômbia, a Venezuela de Hugo Chávez acusou o desconforto. E o presidente Hugo Chávez não demorou a anunciar planos para enfrentar o que considera ¿outra ameaça de invasão imperialista¿: prometeu rever as relações bilaterais, inclusive o comércio, e encomendar mais material bélico da Rússia, seu fornecedor mais habitual.

¿Agora, os ianques querem estabelecer quatro bases militares na Colômbia. Dizem que as bases são colombianas, mas eles vão estar lá permanentemente, e isso nos obriga a rever as relações (com a Colômbia)¿, disparou Chávez diante das primeiras notícias. Na última quinta-feira, no programa de TV Alô, presidente - teórico, ele foi mais claro: ¿Vamos criar vários batalhões de tanques, pelo menos o dobro, e reforçar a infantaria, a artilharia. Vamos incrementar tudo, até onde cheguem as nossas possibilidades¿. O governante venezuelano, que lidera o bloco latino-americano mais à esquerda, não se importa ¿com o que diga o vizinho do lado¿, a quem acusa de ¿abrir as portas para os que sempre nos agridem¿.

O acordo militar entre EUA e Colômbia ainda não foi assinado, mas o governo de Bogotá não se furtou a confirmar alguns dos elementos, adiantados pela imprensa local. É certo que os militares americanos vão transferir suas operações antidrogas da base de Manta, no Equador, cuja concessão venceu e não foi renovada pelo presidente (de esquerda) Rafael Correa, para três instalações militares colombianas. As bases de Malambo, Palanquero e Apiay (veja o mapa) têm localização estratégica, no litoral do Caribe, na Cordilheira Central e na planície oriental. Seguem as negociações para incluir no acordo uma base no Pacífico.

¿Os gringos têm planos de nos invadir e estão ocupando nosso flanco esquerdo, desde o norte e o Caribe até o sul, lá embaixo no (rio) Orinoco¿, insistiu Chávez. ¿A Colômbia quer o quê, que fiquemos calados?¿ A resposta do presidente Álvaro Uribe foi direta quanto aos alvos da cooperação ainda mais estreita com os EUA, desdobramento de nove anos do Plano Colômbia (leia o Para saber mais): mencionou o combate ao narcotráfico, mas acrescentou que ¿o objetivo é erradicar para sempre o terrorismo¿. No discurso de Uribe, ¿terrorismo¿ é outro nome para as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a guerrilha de esquerda mais antiga do mundo, em atividade há 45 anos.

¿Os inimigos da Colômbia são o narcotráfico e o terrorismo. Na medida em que formos mais eficazes contra eles, vamos ajudar a recuperar a segurança para toda a região¿, reforçou o chanceler Jaime Bermúdez. Evitando referir-se pelo nome a Chávez, ele não deixou passar em branco a intensa cooperação militar da Venezuela com a Rússia. ¿Nunca demos opiniões sobre o que nossos vizinhos fazem, nem quando soubemos da presença russa em águas venezuelanas¿, argumentou Bermúdez.

Candidatos pedem mediação de Lula

A polêmica sobre a cessão de bases para operações militares norte-americanas atravessou o caminho da sucessão presidencial de 2010, ainda amarrada à indefinição sobre a possibilidade de o presidente Álvaro Uribe disputar o terceiro mandato consecutivo. Divididos sobre a maior parte das questões, os pré-candidatos são praticamente unânimes na escolha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para mais uma vez aparar as arestas da Colômbia com os vizinhos. A exceção mais evidente é o favorito de Uribe, seu ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos ¿ que participou das negociações.

¿Quando se fala de diplomacia, temos de olhar para o Brasil¿, disse o ex-prefeito de Medellín Sergio Fajardo, um dos cotados para chegar ao segundo turno, caso Uribe não se apresente. O esquerdista moderado Luis Eduardo Garzón, que foi prefeito de Bogotá e antes disso presidiu a maior central sindical do país, não faz segredo da admiração de longa data pelo ¿amigo Lula¿: ¿Ele e a Unasul (União de Nações Sul-americanas) são a chave¿. Rafael Pardo, primeiro civil a ser ministro da Defesa (no início dos anos 1990), critica Uribe por ¿entregar-se gratuitamente aos EUA¿.

O atrito com a Venezuela por conta das bases norte-americanas coincide com uma nova rusga com o Equador, que suspendeu as relações com a Colômbia em março de 2008, depois de um bombardeio que matou, em território equatoriano, um alto comandante das Farc. No início do mês, a Justiça equatoriana tentou (em vão) obter um mandado internacional de prisão contra Juan Manuel Santos, na época ministro da Defesa da Colômbia.

Nas últimas semanas, foi o governo colombiano quem trouxe a público um vídeo, entregue inclusive à Organização dos Estados Americanos (OEA), no qual o segundo homem na hierarquia da guerrilha, conhecido como Mono Jojoy, menciona contribuições das Farc para a campanha eleitoral do presidente equatoriano, Rafael Correa.

O governo de Quito alega que se trata de ¿uma montagem¿ para prejudicar ¿os governos progressistas¿ da região. Segundo Correa, seria uma ¿represália¿ a sua decisão de não renovar a concessão da base de Manta. (SQ)

Reeleição pendente

As manobras para permitir ao presidente Álvaro Uribe tentar a segunda reeleição esbarram na divisão da base governista no Congresso. Uma das emendas propostas está a caminho de ser arquivada, e o tempo agora corre contra os planos dos uribistas de levar a questão a referendo popular. Uribe ainda não se pronunciou claramente, mas seu favorito à sucessão, o ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos, aposta em uma definição até o início de outubro.

Para saber mais Mesma guerra, outro inimigo

O Plano Colômbia nasceu em inglês, em 1998, com Bill Clinton na Casa Branca. Concatenado com os assessores do recém-eleito presidente Andrés Pastrana, ele delineava uma nova estratégia comum para enfrentar dois desafios que, entrelaçados, colocavam nas cordas o Estado colombiano: o narcotráfico e a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

Pastrana costumava se referir ao Plano Colômbia como ¿o plano B¿: ¿Durante 40 anos, nossa política foi a guerra. Tentemos a paz¿. O conceito básico da iniciativa era de que o controle territorial exercido pela guerrilha em pontos chave do território se tornara um empecilho a qualquer esforço para atacar a cadeia produtiva da cocaína e interditar as rotas de tráfico. A alternativa proposta era definida como uma ¿abordagem sistêmica¿: numa ponta, negociações de paz com as Farc; na

outra, ajuda americana para reequipar e treinar as Forças Armadas: no meio, programas sociais e de desenvolvimento para os camponeses cocaleiros.

As negociações com a guerrilha, iniciadas em 1999, terminaram sem sucesso em 2002.A face social do Plano Colômbia jamais saiu do papel. Funcionou de fato o componente militar, traduzido na criação de uma brigada antinarcótico no sul do país, na entrega de dezenas de helicópteros que deram mobilidade e agressividade aos militares colombianos e na multiplicação dos efetivos oficiais ¿ uma conta da ordem de US$ 7 bilhões.

Isso permitiu ao sucessor de Pastrana, Álvaro Uribe, eleito com a promessa de exterminar as Farc, colocar o Exército na ofensiva. George W. Bush, sucessor de Clinton, deu aval para que uma iniciativa de guerra às drogas fosse reconfigurada como tentáculo de sua guerra ao terrorismo. (SQ)