Título: A proteção eterna do governo federal
Autor: Vaz, Lúcio
Fonte: Correio Braziliense, 27/07/2009, Política, p. 4

O título de propriedade da terra não interessa aos assentados de projetos da reforma agrária. Isso resultaria no fim dos repasses do Incra e poderia implicar a perda dos lotes

Endividados, assentados do projeto São Vicente temem perder a terra após a concessão do título de propriedade

Uma reivindicação que poderia parecer óbvia no processo de reforma agrária não existe na prática. Os assentados não têm interesse em assegurar o título de propriedade da terra que ocupam. Isso se explica por motivos bem práticos. Primeiro, porque, ao receber o título de propriedade, eles perderiam o direito a qualquer repasse de recursos do governo federal. A ajuda de custo para implantação, habitação e fomento pode chegar a R$ 35 mil por lote. Se não pagassem financiamentos dos bancos, teriam que honrar a dívida com a própria terra. Talvez isso explique por que apenas 106 das 12.480 famílias assentadas no Distrito Federal e no Entorno têm título de propriedade da terra. Os ¿sem-terra¿ reclamam muito do governo federal, mas parecem querer ficar eternamente sob a sua proteção.

Gaspar Martins, um dos coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) no DF e Entorno, explica de forma direta por que não interessa ao movimento titular as terras. ¿Depois que passou o título, acabou, não existe mais nenhum recurso. O governo sai fora de todo o processo. Aí, é tratado de proprietário para proprietário. O governo não investe mais.¿ Ele reconhece que haveria o risco de perda da terra para pagar financiamentos. ¿Por exemplo, no caso dos assentados que estão endividados hoje, a terra poderia ficar penhorada para pagar a dívida do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Então, o Incra perde o domínio da terra, e o agricultor pode perder a terra para pagar dívida.¿

A mesma posição é defendida pelo presidente da Associação de Miniprodutores de São Vicente, Aldrey Galvão. O assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Flores de Goiás existe há mais de 10 anos, mas apenas 8 dos 583 lotes foram titulados. Ele afirma que os assentados não querem o título da terra. ¿Na situação em que está hoje um assentado, se pegar o título da terra, o que ele vai fazer? Vai penhorar no Banco do Brasil e perder o direito.¿ Ele relata outra consequência da titulação: ¿Não tem mais recurso do governo federal. Você não recebe mais dinheiro de maneira nenhuma. O governo federal tira a proteção de cima e acabou.

¿Não interessa¿

Martins afirma que, sem ter o título da terra, o assentado pode negociar melhor suas dívidas. ¿Pode renegociar, o banco não pode tomar porque a terra não é nossa, é do Incra, do próprio governo.¿ Ele diz que realmente não interessa a titulação: ¿Não é, não é interessante. O interessante para nós é o título da concessão de uso da terra. Em vários assentamentos, já estamos fazendo a proposta para o Incra de titulação coletiva¿. E explica as vantagens dessa modalidade: ¿Na concessão do uso da terra, se eu morro hoje, fica com um filho, com um irmão, vai passando de geração para geração. Se tiver o título, a pessoa já pode vender automaticamente. Incentiva muito mais a venda de lotes da reforma agrária¿.

O líder do MST informa que, no início do governo Lula, o movimento reivindicou que o presidente publicasse uma portaria para garantir concessão do uso da terra. ¿Mas acabou chegando o final (do governo) e isso não aconteceu. Em muitos estados, nós conseguimos trabalhar com a concessão de uso. Mas tem vários estados que ainda não se adaptaram a esse sistema.¿

No assentamento de Martins, o Menino Deus, em Unaí (MG), nenhum dos 30 lotes está titulado. Ele argumenta que o atraso na implantação de infraestrutura nos assentamentos é outro motivo para que o movimento evite a titulação. ¿Eu, por exemplo, estou no assentamento há 12 anos. Dentro da lógica, já poderiam ter titulado. Mas o governo não emprestou nenhuma parte da infraestrutura que era por conta do Incra. Agora, se emancipar e cada um tiver o título, aí que não tem mesmo. Aí, o governo não tem a obrigação de aplicar políticas públicas dentro do assentamento.¿

Galvão afirma que a titulação seria uma boa aternativa se o Incra ajudasse a comunidade a começar a produzir. ¿Depois que produzir, estando legal com as contas no banco, aí seria bom, porque a gente começaria a trabalhar e a desenvolver. Aí, a titulação pode ser viável para qualquer assentamento. Mas, no jeito que está a situação do nosso assentamento, a titulação imediatamente não é viável.¿

Projeto falido

O projeto de assentamento São Vicente foi implantado há 12 anos. Os 539 lotes iniciais deveriam receber irrigação, com água captada da barragem do Macacão ¿ uma das 10 previstas no projeto de irrigação Flores de Goiás. Mas a irrigação não chegou até hoje. Os assentados estão endividados e não recebem novos recursos para plantar. Só produz quem trouxe dinheiro de fora para investir.