Título: Além do Atlântico Norte
Autor: Szajman, Abram
Fonte: Correio Braziliense, 27/07/2009, Opinião, p. 11
Presidente da Federação e Centro do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), do Sebrae (SP) e dos Conselhos Regionais do Sesc e do Senac
Ao lado dos aspectos puramente econômicos da crise mundial, os contornos geopolíticos de suas consequências apontam cada vez mais para um processo de transformação das relações entre povos e nações. O fenômeno poderá levar a uma ruptura com o padrão de dominação estabelecido desde a revolução mercantil dos séculos 15 e 16.
Depois da ascensão e queda do Império Britânico, a hegemonia dos Estados Unidos ¿ superpotência que restou após o colapso da União Soviética ¿ dá sinais de esgotamento ante problemas internos e externos. Por mais simpatia que desperte o presidente Barack Obama, parece estar além de suas forças evitar o declínio de uma nação imersa no desemprego, com grandes empresas e bancos à beira da falência e que ainda por cima se dá ao luxo de sustentar duas guerras simultâneas para as quais não se enxerga desfecho próximo.
A fragilidade atual dos Estados Unidos está exposta a olho nu. O mesmo país que há 40 anos despertou admiração ao levar o homem à lua, até hoje não foi capaz de criar um sistema público de saúde para os 47 milhões de americanos que não podem arcar com os custos da assistência médico-hospitalar privada. Em seus déficits cada vez mais crônicos, que o mundo se organiza para deixar de financiar, figura um rombo superior a US$ 600 bilhões em 2008 apenas com gastos militares ¿ 10 vezes mais do que a China, seu concorrente mais próximo nesse quesito.
Como a também rica e outrora agressiva Europa ¿ matriz dos modelos colonialistas e imperialistas que se espalharam pelo planeta nos últimos cinco séculos ¿ encontra-se igualmente prostrada pelo furacão originado em Wall Street, nada mais natural que os grandes países de outros continentes constatassem ser chegada a hora de agir em prol da condução autônoma de seus destinos.
Cansadas de ver as decisões políticas, econômicas, financeiras e militares, que impactam todos os países, serem tomadas apenas por alguns em círculos restritos como o G8, o FMI, o BIRD ou o Conselho de Segurança da ONU, as nações emergentes uniram-se para criar foros internacionais mais amplos, o que explica o surgimento do G-20 e, mais recentemente, do Bric.
No caso do G-20, após duas reuniões de seus chefes de Estado, o grupo formado por países de todos os continentes e regiões qualificou-se para ser o eixo das medidas coordenadas de enfrentamento da crise. Nele pode ser gestado um sistema de governança global, que supra as lacunas das instituições legadas por Bretton Woods, para o controle das atividades financeiras, estabelecendo a regulação dos mercados na direção do sonho de Lord Keynes da moeda única, administrada por um banco central global.
Já o Bric, bloco novo e sui generis por agrupar países de continentes, regimes políticos e tradições culturais distintas, mas que representam 40% da população e 15% do PIB mundiais, tem tarefas mais imediatas como a substituição do dólar como moeda de referência do comércio internacional, o que dever ser feito com cautela, pois Brasil, Rússia, Índia e China possuem 70% de suas reservas em títulos do governo norte-americano.
Ainda é cedo para dizer se o G8 está vivo ou morto, mas o certo é que as decisões tomadas exclusivamente nas duas margens do Atlântico Norte ¿ que, no século 20, produziram duas guerras mundiais, a degradação ambiental sem precedentes e um fosso entre países ricos e pobres ¿ estão com os dias contados. Os povos norte-americano e europeu legaram ao mundo, além da sociedade industrial, os ideais de liberdade, fraternidade, progresso e independência, dos quais se afastaram, e que devem ser preservados. Mas, ao adotarem um modelo de acumulação desigual e injusto, deixaram também para dois terços da humanidade um atraso econômico e social que só reverterá pela ação coordenada dos povos eslavos, asiáticos, africanos e latino-americanos em busca de novos paradigmas nas relações econômicas internacionais.
O Brasil, um dos principais articuladores do G-20 e que se revelou catalisador apto a fazer as demais nações do Bric superarem suas desconfianças mútuas, encontra-se hoje numa situação favorável, não apenas perante a crise econômica, mas, também, como protagonista da nova ordem política mundial em gestação. Possui a matriz energética mais limpa entre todas e evolui socialmente ao incorporar milhões de pessoas aos mercados de trabalho e de consumo. Por tudo isso, pode e deve ser uma voz crescente na arquitetura financeira e no comércio internacional.