Título: Um país, duas revoluções
Autor: Cozart, Alvaro de
Fonte: O Globo, 08/04/2011, O Mundo, p. 27
Rivalidade entre leste e oeste gera desconfiança mútua e põe em dúvida futuro pós-Kadafi Alvaro de Cozart TRÍPOLI. "Tenho um vídeo que pode lhe interessar. Você vê a execução de um rebelde. Mataram-no porque não ele quis dizer que Kadafi é grande", disse a voz do outro lado do telefone. Horas depois, um homem entra no saguão do hotel em Trípoli e entrega um CD. "Por favor, é um vídeo. Veja o que os rebeldes estão fazendo aos líbios." As imagens mostram jovens enfiando uma vara afiada no corpo de um homem pendurado de cabeça para baixo. Apesar da credibilidade das imagens ¿ que não podem ser confirmadas de forma independente ¿ histórias de atrocidades contadas por ambos os lados têm um efeito devastador na união do país, e alguns tripolitanos que apoiam a revolução começam a expressar suas dúvidas quanto ao futuro pós-Kadafi, se é que ele vai ocorrer. ¿ Eu fui às manifestações para exigir a saída de Kadafi. Estou cansado do regime e de suas mentiras. Quero uma democracia, mas não é isso que querem as pessoas em Benghazi. A eles só interessa seu território ¿ diz um comerciante da capital, pedindo anonimato. As rivalidades entre leste e oeste são antigas. A Líbia, um Estado quase federal dividido em três regiões (Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan), foi centralizada em 1959 com a descoberta dos primeiros campos de petróleo. Uma das áreas mais pobres, a Cirenaica, viu, então, seus recursos controlados pela capital. Isso, conjugado a velhas ideias sobre o que os italianos fizeram com Trípoli em poucos dias ¿ necessitando, por outro lado, de anos para conquistar a parte oriental ¿ manteve latentes essas disputas. ¿ São guerreiros e cruéis. Eles não pensam em chegar a Trípoli, derrubar Kadafi e instalar a democracia. Se vierem, é para criar um novo regime ainda mais cruel do que o que temos ¿ suspeita um taxista. Especialista em Líbia e presidente da Universidade Americana do Cairo, Lisa Anderson concorda que é errado chamar o povo do leste de "combatentes pró-democracia", definição usada por alguns governos e pela mídia. ¿ Há gente que luta pela democracia em todo o país, mas não está claro que esse é o objetivo de todos os que lutam no leste. Kadafi usa a propaganda para dizer que, sem ele, virá o caos. É um exagero, mas é certo que a Líbia poderia ficar dividida ¿ avalia Lisa. Nessa análise, duas revoluções nasceram ao mesmo tempo: uma sociedade democrática, pronta para retirar o país do isolamento, e outra mais tribal, exigindo direitos sobre o território oriental. Mas, tudo isso é negado pelos que comandam a revolução do leste ¿ os líderes tentam construir a ideia de que o país está unido contra o coronel, recorrendo a slogans como "Líbia, um clã, Trípoli, nossa capital". Enquanto isso, o país é destruído pouco a pouco, e o regime tenta esconder todos os sinais da revolta nas cidades rebeladas e recuperadas. Em Zawiya, a pouco mais de 40 quilômetros da capital, sete túmulos nos quais os rebeldes enterraram seus heróis foram profanados. Em seu lugar, restam apenas a terra remexida e várias árvores caídas. Na praça central, onde os rebeldes resistiram até o último suspiro numa batalha feroz contra forças pró-Kadafi, ainda há resquícios do combate. Vários edifícios escurecidos estão destruídos. Em outros, vê-se o impacto da artilharia pesada. Há buracos de bala em quase todas as fachadas. No lugar onde ficava a mesquita, existe agora só um terreno baldio. Segundo funcionários do governo, o templo foi demolido por razões de segurança. O clima que permeia as ruas é estranho. Um jovem se recusa a conversar com os jornalistas e fecha a porta de sua loja. Um senhor deixa claro, com gestos, que o que aconteceu foi horrível, mas se furta a dizer alguma coisa. Alguns homens ensaiam um leve sorriso e fazem um gesto carinhoso aos repórteres. Ninguém diz nada. Vão caminhando e deixam a imprensa com uma centena de jovens cantando e dançando, enquanto agitam bandeiras verdes e retratos do ditador.