Título: Levar o desarmamento a sério
Autor:
Fonte: O Globo, 09/04/2011, Opinião, p. 6

A campanha lançada em 2003 como desdobramento do Estatuto do Desarmamento, para recolher armas, foi eficaz instrumento de redução dos indicadores da violência. Em outubro de 2005, ao fim do movimento que convidava a população a participar de forma espontânea, o total de armas recolhidas pelo Estado chegou à casa de 500 mil. Prova incontestável de que esse arsenal abastecia estatísticas com trágicos números foi recolhida em levantamento do Ministério da Saúde: de 2003 a 2006, houve uma queda de 17% nos registros de mortes por armas de fogo no país. No âmbito da administração pública, só em internações evitadas de feridos o SUS deixou de gastar R$93 milhões; pelo viés social, dessa redução decorreu que número significante de famílias deixou de lamentar a perda de parentes.

Infelizmente, a esse bom indicador não se seguiu um movimento que aprofundasse o repúdio da sociedade a engenhocas letais. Em 2005, o país perdeu, no plebiscito sobre o fechamento do comércio especializado, grande chance de tirar mais armas de circulação e estabelecer barreiras efetivas à compra de armamento. Em boa hora, portanto, o Ministério da Justiça reafirma a retomada da Campanha do Desarmamento. É medida urgente, imperiosa, premente, diante da tragédia de anteontem em Realengo, uma chacina que deixou 12 crianças mortas e um sentimento de horror no mundo inteiro.

Não é, no entanto, ação com que se pretenda dar por resolvido o problema da violência. Mas o desarmamento é passo estratégico, e se devem dar outros, como o cumprimento estrito do Estatuto em vigor, a adoção de um programa de fiscalização permanente e um sistema efetivo de controle das fronteiras, por onde passa boa parte do arsenal que arma bandidos e loucos - e mesmo cidadãos que comungam com o equivocado princípio de se armar como defesa contra a violência.

Adeptos desse tipo de raciocínio argumentam que, enquanto os cidadãos se desarmam, os criminosos reforçam seus arsenais - segundo eles, graças ao tráfico de armas, e não por culpa do comércio legal e controlado. Mas relatório da CPI do Tráfico de Armas da Câmara dos Deputados desmente a tese com números.

De acordo com o documento, especificamente no Estado do Rio, palco da tragédia e onde existem quase 600 mil armas ilegais, 86% do armamento usado por criminosos saíram das lojas legalmente estabelecidas. Cai por terra, portanto, o argumento de que é possível manter sob controle, pelo rastreamento, a circulação de armas em mãos de cidadãos pacíficos. Ajuda a desfazer esta inocente visão o fato de a Polícia Federal ser leniente com o controle da trajetória desse arsenal em direção ao paiol dos bandidos.

É preciso tratar a questão do desarmamento, da aplicação do Estatuto e da fiscalização como política de Estado, perene. Criar barreiras para a circulação de armas não é uma fórmula mágica, panaceia capaz de, por si só, proteger a sociedade de psicopatas como o assassino de Realengo. Mas é uma entre tantas medidas a serem tomadas pelo poder público para reduzir riscos e conter a banalização de tragédias, sejam elas restritas a pequenos círculos familiares ou de proporções como o assassinato em série na Escola Tasso da Silveira.