Título: O homem que violou o embargo da ONU ao Irã
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 10/04/2011, O País, p. 12

Condenado nos EUA por vender tecnologia proibida, engenheiro brasileiro vive em liberdade condicional na Tijuca

A timidez sumia à medida que decotava a bela lasanha, rumo ao fundo do prato. Entre garfadas, emergia a voz treinada de um professor de equações, cuja cabeça agora estava dividida entre dois prazeres: a massa italiana levemente gratinada e um breve discurso sobre o colapso por compressão (flambagem) de estruturas de metal e concreto plantadas na voragem dos oceanos, a mais de 1.500 metros metros de profundidade.

Parou para ajeitar os óculos, conferiu se a camisa xadrez continuava imaculada de molho, e retomou com escárnio:

- Mas o que isso tem a ver com o fato de eu ser terrorista?

Para o governo americano, Nelson Szilard Galgoul, 62 anos, engenheiro e empresário carioca com uma centena de empregados, reconhecido analista de cálculo de grandes estruturas submarinas e professor em duas universidades federais (UFRJ e UFF), encarna uma ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos.

Em 2008 ele foi condenado a quatro anos de prisão (além de multa de US$202 mil, equivalentes a R$364 mil) por vender tecnologia proibida para o Irã - país que há década e meia está sob embargo econômico e militar internacional por causa do seu programa nuclear. Foi uma das maiores punições impostas pela Justiça dos EUA a um executivo por violação das leis de controle de exportação.

Galgoul passou 390 dias em presídios americanos

Após 18 meses em presídios do Texas e da Lousiana, Galgoul vive em liberdade condicional nas ruas da Tijuca, na Zona Norte do Rio.

- Nenhuma prisão gera correção, só revolta - recita, enquanto garfa a última fatia de massa. Degusta como se tentasse limpar da memória o sabor do bolo de carne, do tipo "coma por seu próprio risco", ocasionalmente servido no jantar da prisão. - Espantosamente - continua - os americanos são tão incapazes de lidar com outros povos que geram ódio. Acham que esse ódio é por inveja. Só sendo cego para não enxergar as razões.

O ressentimento tem raízes profundas, muito além da experiência de 390 dias trancafiado em penitenciárias federais (oito meses em Seagoville, no Texas, e mais cinco meses em Nova Orleans, na Louisiana), sob um regulamento que não permite visita conjugal e impõe cama feita "ao estilo militar" às 7h30m de cada manhã - com "sapatos alinhados sob o leito, bicos apontados para fora".

Galgoul é um cidadão com passaporte americano que, por acaso, nasceu na Tijuca. Filho de Leon, missionário da Igreja Batista da Louisiana, e de Carolina, judia cuja família escapou do nazismo na Hungria. Passou a infância nos EUA, e a adolescência, estudando a Bíblia em povoados do Cerrado brasileiro. De volta à Tijuca, estudou engenharia na UFRJ e seguiu para a Universidade Técnica de Munique, na Alemanha. Saiu dali com pós-doutorado e reconhecimento por contribuir para a revisão da norma técnica germânica sobre cálculo de compressão (flambagem).

Sua carreira floresceu em empreendimentos como o emissário submarino de Ipanema e ganhou impulso nos anos 90 com a investida da Petrobras na Bacia de Campos. Em 1994 associou sua empresa, a Suporte Consultoria e Projetos, à Engineering Dynamics, criada por James Angehr e John Fowler na cidade de Kenner, região metropolitana de Nova Orleans.

Aos 44 anos estreou no circuito comercial de Teerã. Levou na bagagem um software com capacidade para resolver múltiplas análises em estruturas de engenharia civil e, também, em projetos militares:

- Foi minha primeira venda: um software Ansys para projetos de plataformas marítimas. O governo americano diz que é tecnologia sofisticada. Bobagem, é um programa comum.

Desde então, e por mais de uma década, foi o personagem improvável de cenas insólitas às margens da Avenida Enqelab, que divide Teerã: um descendente judeu, educado pelo pai na conservadora interpretação batista da Bíblia, conduzindo negócios proibidos na antiga Pérsia, onde se forjaram os elementos fundamentais da cultura e tradição muçulmana do Islã xiita.

- Fiz 50 viagens ao Irã. Foram 13 anos intensos (1994 a 2007). Treinei mesmo muita gente por lá.

Galgoul revisa a memória, depois do almoço, agora sentado em um dos sólidos e bem torneados bancos de madeira da Igreja Batista de Itacuruçá, na Tijuca, local de seus cursos bíblicos dominicais:

- O Irã é uma ditadura religiosa assentada em dinheiro do petróleo, que ainda vai cair ao custo de muitas vidas. Mas, é preciso dizer, os judeus vivem ali pacificamente. E odeiam o Estado de Israel.

Quando fechou seu primeiro contrato em Teerã, o país dos aiatolás ainda não estava sob embargo econômico internacional - decretado no ano seguinte-, mas já cultivava a reputação de centro operacional do terrorismo xiita. O governo do aiatolá Ali Khamenei já contava 114 mortes em atentados contra alvos judeus na América do Sul.

Os negócios prosperaram em segredo. Pela década e meia seguinte,apesar do embargo da ONU, Galgoul vendeu a joia tecnológica da Engineering Dynamics, um sistema integrado de análise estrutural (conhecido como SACS) para as maiores estatais iranianas. E, principalmente, para empresas sob controle acionário direto da Guarda Revolucionária Islâmica, a mais influente força política e econômica do país. Em março de 2007 saiu de Teerã às pressas, ao saber que uma briga de sócios da EDI resultara em denúncia das operações iranianas ao FBI. Galgoul voltou ao Brasil e, depois, viajou aos EUA. A realidade superou a imaginação do analista de cálculo.