Título: Para mim, Cuba é como um purgatório
Autor:
Fonte: O Globo, 17/04/2011, O Mundo, p. 44

REFORMAS NA ILHA

Leonardo Padura, um dos mais festejados escritores do país, reflete sobre as mudanças em andamento

Os livros de Leonardo Padura são ansiosamente aguardados. Não apenas em Cuba, país onde nasceu e decidiu "apesar das contradições e adversidades" continuar vivendo, mas também em México, Colômbia, Venezuela, Argentina, Espanha. Em Cuba, reclama ele, não há livros suficientes para sua quantidade de leitores porque "falta papel para imprimi-los".

- As pessoas me telefonam em casa, me param na rua e eu digo: gente, sou um escritor, não uma impressora - conta o autor de 56 anos.

Foi assim com seu último romance, "El hombre que amaba a los perros", que, para a surpresa de Padura, foi lido pela então candidata à Presidência Dilma Rousseff, segundo declarou, na época, seu amigo Marco Aurélio Garcia. Surpresa porque, no Brasil, Padura (ainda) não virou febre como é nos países vizinhos; situação que o escritor espera reverter. A Companhia das Letras publicou algumas de suas obras, e os direitos de "El hombre..." foram comprados recentemente pela editora Saraiva.

A história do livro devorado por Dilma foi criada a partir do assassinato de Leon Trotsky por um agente de Joseph Stalin, em 1940. Um amigo do assassino, amante de cachorros, reconstitui o crime e discorre sobre utopias perdidas numa Havana dos anos 70. A morte do intelectual marxista e revolucionário bolchevique pelo estado totalitário que, sem dúvida, Trotsky não idealizou teria um exemplar latino na morte do sonho cubano? Por telefone de sua casa em Havana, Leonardo Padura fala sobre essa e outras questões, e ainda sobre as mudanças que, segundo ele, já atingem a ilha, palco esta semana de um histórico congresso do Partido Comunista de Cuba, o PCC.

Mariana Timóteo da Costa

Em seu último livro, o senhor julga a utopia comunista. Segundo o senhor, a morte de Leon Trotsky representou o fim de um sonho. O sonho também acabou em Cuba?

LEONARDO PADURA: Cuba segue sendo uma referência para muitos países latino-americanos, e com razão. No entanto, só quem vive aqui sabe como temos expectativas que não foram realizadas. Quando eu digo que a morte de Trotsky de alguma forma simboliza a morte da utopia me refiro aos extremos do stalinismo, que perverteu os ideais originais do grande sonho do século XX: de que todos seriam iguais e viveriam com liberdade. Cuba mostrou que parte disso foi possível, mas há muito o que melhorar. Sou contra quem endeusa, mas sou contra também quem demoniza Cuba. Para mim, Cuba é como um purgatório: nem céu, nem inferno.

O presidente Raúl Castro anunciou uma série de mudanças na economia da ilha nos meses anteriores ao Congresso do PCC. Já é possível enxergá-las nas ruas ?

PADURA: Estamos no princípio de uma nova etapa, ainda é difícil definir o que será Cuba nos próximos anos. De qualquer maneira, já vejo pequenos comerciantes autônomos nas ruas e partes de Havana em processo de revitalização. Os salários subiram, mas seguem insuficientes, e a necessidade de subvenção é enorme. As mudanças são parte de uma necessidade: a economia e a sociedade cubanas estavam imóveis, e no mundo hoje a mobilidade econômica é essencial, inclusive para atrair grandes investimentos de países como o Brasil. Mas também é importante que essa mudança ocorra na parte de baixo da sociedade, com a participação e a criatividade de pessoas que foram impedidas de trabalhar direito durante tantos anos.

E não incomoda que as mudanças econômicas venham antes das mudanças políticas?

PADURA: Eu creio que as mudanças econômicas são vitais e vão provocar mudanças sociais depois. E daí partimos para mudanças políticas. Quando e como elas vão ocorrer, é difícil saber agora. Um de meus temores, no entanto, é que as mudanças econômicas façam com que um setor menos privilegiado da população perca alguns benefícios. Mas é um risco que temos que correr. É preciso descentralizar o Estado: a relação das pessoas com o Estado muda quando elas trabalham fora dele.

Apesar de retratar as mazelas de Havana, sua obra nunca foi censurada em Cuba, o senhor sempre pôde viajar e resolveu ficar na ilha sem, no entanto, tecer críticas mais duras ao regime castrista. Por que?

PADURA: Acho que teria uma outra relação com o governo se tivesse sido impedido de viajar, ou se minha obra não fosse publicada aqui. Apesar de me frustrar com o fato de, por exemplo, não haver papel suficiente para imprimir meus livros. Sobre ficar em Cuba, eu sou um escritor cubano, e o desapego e a distância são muito difíceis para qualquer autor. Minha decisão de ficar ocorreu no auge da crise, nos anos 90, quando não havia eletricidade, transporte, comida, dinheiro, nada. Foi uma decisão livre e pessoal. Preciso estar na minha casa e me comunicar com as pessoas, é a realidade cubana que me nutre como escritor. Quanto ao governo, penso no presente: me obrigo a ser otimista porque tivemos muitas ilusões, trabalhamos muito, sofremos muitas necessidades e carências e todos esperamos um futuro melhor.

O ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva foi muito criticado por não adotar um tom mais duro sobre a questão dos direitos humanos em Cuba. Uma visita da presidente Dilma Rousseff, aliás leitora sua, à ilha já foi anunciada. Há expectativa de que o Brasil se posicione de uma outra maneira?

PADURA: Tenho esperanças, sim. O Brasil tem um papel politico e econômico cada vez mais importante no mundo e seria muito bom se isso fosse convertido em novas possibilidades para Cuba. Todos os países têm problemas, e eles podem ser combatidos, sempre com o respeito devido aos direitos civis e humanos. Aliás, fico muito feliz de saber que a presidente de vocês me lê. A eleição dela me surpreendeu positivamente, rompendo com preconceitos culturais que acompanham nós, latinos, há muito tempo.

Não incomoda ao senhor que muitos artistas e intelectuais não possam expressar livremente sua opinião em Cuba?

PADURA: Trata-se de um problema muito complicado, que deve ser visto de duas maneiras: de um lado, há a criação da cultura; e, de outro, existe a produção. A criação é a dos artistas, dos pintores, dos escritores, dos bailarinos. Ela é grande e pujante em Cuba. O problema está na produção, e é aí que está o problema porque isso depende da subvenção estatal. Para fazer cinema, publicar livros, lançar discos, é só o que o Estado quer. Me incomoda um governo que fez com que todo o seu povo soubesse ler e não haja livros suficientes. Isso é uma contradição, é um problema grave e precisa ser solucionado.

O senhor revisou os roteiros dos sete episódios do esperado filme "7 dias em Havana", uma produção internacional que traz nomes como Benicio del Toro na direção e cujo enredo central é a capital cubana. Como evitar que Cuba caia no clichê?

PADURA: Muitas vezes quem vem de fora traz um olhar superficial. Clichês como turismo sexual e religiões afro-cubanas, por exemplo, saíram do centro das histórias.

Quais são seus maiores desejos para Cuba?

PADURA: Que médicos não precisem fazer bicos como transportar gente doente em seus carros de passeio para o hospital, só para ganhar um trocado extra. Que os cubanos possam ler os livros de Roberto Bolaño e Paul Auster, que não chegam aqui. Que possam viver dignamente de seus salários. Que eu consiga ter uma conexão melhor à internet.