Título: Misurata, o maior horror da guerra
Autor:
Fonte: O Globo, 19/04/2011, O Mundo, p. 26
Milhares tentam deixar cidade sitiada há dois meses por forças de Kadafi e onde falta tudo
A MENINA HEBA, de apenas 3 anos, atingida no abdômen e na perna por uma bomba, ao lado da avó, num hospital em Misurata: risco de escassez de médicos estrangeiros
MISURATA, Líbia
Sitiada há quase dois meses pelas forças leais ao coronel Muamar Kadafi, Misurata ¿ única cidade ainda nas mãos dos rebeldes no oeste do país ¿ começou a receber ajuda externa para resgatar os milhares de estrangeiros que aguardam com impaciência uma maneira de abandonar o cenário apocalíptico que tomou conta do lugar. Um navio enviado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) conseguiu retirar da cidade cerca de mil estrangeiros de Gana, Filipinas, Egito e Ucrânia, e cem líbios, inclusive um bebê que levou um tiro no rosto. Além disso, o Reino Unido afirmou estar disposto a destinar o equivalente a R$3,8 milhões para enviar medicamentos e embarcações para buscar outros 5 mil estrangeiros bloqueados em Misurata.
O resgate teve que ser feito rapidamente, no intervalo de bombas lançadas pelas forças do ditador. Já dentro do navio, a maior parte dos estrangeiros levava consigo apenas as lembranças dos dias de inferno vividos na cidade sitiada. Centenas de pessoas dormiam no deck da embarcação ou sobre mesas normalmente usadas para as refeições de turistas. Nas cabines, estavam dezenas de feridos, incluindo quatro líbios que sofreram amputações recentemente.
¿ Agradeço muito por esse navio ¿ disse Mohamed Youssif, cuja perna direita fora amputada na véspera após ter sido atingido num combate contra as forças de Kadafi.
Segundo Jeremy Haslam, funcionário da OIM, os resgatados estavam fracos e desidratados, e alguns, próximos à morte. Eles seriam levados a Benghazi, no leste, controlada pelas forças insurgentes.
¿ Nós queríamos conseguir resgatar mais pessoas, mas não foi possível ¿ disse Haslam. ¿ Apesar de o combate ter cessado no momento em que estávamos embarcando, tivemos muito pouco tempo para colocar estrangeiros e líbios no navio e partir.
Europa estuda o envio de tropas
A situação caótica da cidade levou a ONU a assinar um acordo com o governo líbio para levar ajuda humanitária até lá. Segundo um líder dos insurgentes, o acordo inclui a instalação de um corredor humanitário até Misurata. Mas a subsecretária-geral para Assuntos Humanitários da ONU, Valerie Amos, disse que Trípoli não se comprometeu a suspender ataques para permitir a chegada de socorro.
¿ Eles não deram nenhuma garantia ao meu pedido por uma suspensão das hostilidades para permitir que as pessoas se refugiassem e que nós pudéssemos levar assistência às zonas de combate ¿ explicou.
A União Europeia afirmou que estuda um plano de enviar tropas a Misurata para proteger a entrega de ajuda humanitária, caso a ONU solicite. Se aprovado, o plano permitiria a entrada pela primeira vez no conflito de tropas ocidentais por terra.
Terceira maior cidade da Líbia, Misurata está sendo constantemente atingida por morteiros e foguetes das forças de Kadafi. Um porta-voz do movimento rebelde alertou ontem que a situação piorava a cada hora, com a intensificação da ofensiva do regime. Atingida pelo conflito, que já fez cerca de mil mortos ¿ 80% deles, civis ¿ , a população conta com cada vez menos comida e espera a oportunidade de fugir num suposto próximo barco. Apenas entre domingo e ontem, ao menos 25 pessoas morreram nos confrontos.
Além disso, falta tudo na cidade: água, medicamentos e eletricidade. Testemunhas relatam cirurgias feitas apenas com a ajuda da luz do celular, por falta de energia elétrica. E até os médicos e enfermeiras, em sua maioria, estrangeiros, estão ficando escassos, com muitos tendo se dirigido ao porto na esperança de serem resgatados. Algumas enfermeiras conseguiram embarcar no navio que zarpou ontem e afirmaram que outras pretendem fazer o mesmo.
Mas enquanto milhares de pessoas se amontoavam no porto de Misurata, não estava claro quando chegaria o próximo navio de resgate. Para acelerar a ajuda à cidade, o ministro da Economia alemão, Rainer Bruederle, sugeriu que a União Europeia transferisse os fundos congelados de Kadafi ¿ estimados em US$120 bilhões espalhados pelo mundo ¿ à ONU, para pagar a assistência humanitária.
Com a situação da cidade se degradando diariamente, tanto a população quanto os rebeldes se indagam sobre o paradeiro da Otan ¿ que comanda a ofensiva internacional contra alvos militares do governo líbio. Segundo os rebeldes, a aliança teria atribuído a ausência de ataques nos últimos quatro dias às ¿condições meteorológicas adversas¿.
¿ As forças de Kadafi não têm nenhum problema com a meteorologia para nos atacar ¿ ironizou o insurgente Shamsiddin Abdulmolah. ¿ Às vezes, achamos que a Otan usa qualquer desculpa para não fazer o seu dever.