Título: Falta legitimidade
Autor: Tórtima, José Carlos
Fonte: O Globo, 23/04/2011, Opinião, p. 6

As notícias sobre os bombardeios desfechados contra o território líbio pelas forças aéreas de França, Inglaterra e Estados Unidos (estes, apenas inicialmente) não são animadoras, havendo registros de grande número de vítimas entre a população civil.

A própria Liga Árabe, grande instigadora da medida, passou a criticar as operações militares, para se safar das consequências políticas do que viesse a dar errado.

Mas a questão da legitimidade, ou não, dos ataques é outra história. Por enquanto, a pergunta que se recusa a calar é a seguinte: já que a justificativa para a intervenção militar seria proteger civis das brutalidades de um regime tirânico, por que apenas a Líbia foi escolhida como alvo?

O tenebroso passado colonial da França, e sua longa folha corrida de torturas e massacres contra populações civis, justamente no Norte da África, já a deixaria pouco à vontade para gritar por direitos humanos na região.

E, passado por passado, os Estados Unidos também não ficam bem nessa foto. Único país do planeta a fazer uso sistemático do napalm contra seres humanos, como ocorreu no Vietnã, e mantenedor de inúmeras ditaduras sanguinárias ao redor do mundo, Tio Sam também não teria lágrimas lá muito sinceras para verter pelas vítimas do ditador líbio.

A política externa americana criou, na prática, ao longo de sua história, a bizarra categoria dos ¿tiranos do bem¿, aqueles ditadores considerados amigos dos Estados Unidos, não importa quão cruéis e corruptos fossem eles.

Nunca lhes faltou apoio político de Washington, com direito a veto das eventuais sanções propostas contra seus governos na ONU, além de ajuda militar e assistência técnica (leia-se: cursos teóricos e práticos de tortura) para os respectivos órgãos de repressão política.

Mas falemos do presente. Ao que parece, esse ranço da política externa americana e de algumas potências ocidentais, de tratar as ditaduras remanescentes no mundo de acordo com suas próprias conveniências, persiste. Seus governos optaram pelo silêncio cúmplice, ou meras manifestações protocolares de desacordo diante das barbaridades dos outros ditadores da região com os quais simpatizam.

Num sábado de março, em Sana, capital do Iêmen, ferrenho aliado dos EUA, pelo menos 52 manifestantes de oposição foram mortos e centenas de outros foram feridos pelas balas dos atiradores de elite do governo, enquanto Hillary Clinton apenas se diz ¿alarmada¿ com a situação do país e pede ¿diálogo¿ entre as duas partes. Sarkozy e Cameron fingiram-se de mortos.

Outro amigo dos Estados Unidos, o rei Hamad, do Bahrein, chegou a convocar tropas da Arábia Saudita para ajudar na sangrenta repressão às manifestações pacíficas da oposição, sem qualquer reação dos responsáveis pela intervenção militar na Líbia.

Mas quanto a Muamar Kadafi, o ¿tirano do mal¿, a ordem é detoná-lo. Ironicamente, não por seus incontáveis pecados, mas, verdade seja dita, por uma de suas poucas virtudes: a independência de sua política externa, um perigoso exemplo para os povos vizinhos que escolheram o caminho da liberdade.

JOSÉ CARLOS TÓRTIMA é advogado.