Título: Na contramão da ONU
Autor: Galli , Beatriz
Fonte: Correio Braziliense, 01/08/2009, Opinião, p. 21

Advogada e consultora de direitos humanos do Ipas Brasil, é autora do livro Mortalidade materna e direitos humanos ¿ As mulheres e o direito de viver livre de morte materna evitável (Edições Advocaci, 2005)

No Brasil, a situação da mortalidade materna continua sendo preocupante. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2006 o país teve 1.623 casos. Hipertensão, hemorragias, infecção puerperal e aborto seguem sendo as principais causas de morte materna no Brasil. No entanto, dependendo do estado do país, as causas mudam.

Somente nas últimas semanas, o país assistiu, pela imprensa, ao desespero de três famílias no Rio de Janeiro que perderam uma filha grávida e três bebês por não terem as mulheres sido atendidas no serviço público de saúde. No primeiro caso, o da jovem Manuela da Costa, de 29 anos, o médico plantonista do Hospital Miguel Couto escreveu em seu braço, a caneta, o nome da maternidade e o número do ônibus para onde deveria ir, apesar de ela estar em estado grave. O bebê, de sete meses, morreu. Junto com Manuela, outras duas grávidas também tiveram seus braços marcados pelo mesmo médico. No segundo caso, mãe e filho morreram na porta do Hospital da Posse, depois da gestante ter sido recusada por não haver vaga na UTI do hospital. A mãe tinha 31 anos e o bebê, nove meses. Em Niterói, Joelma dos Santos, de 24 anos, grávida de nove meses, também perdeu o bebê depois de procurar o Hospital Estadual Azevedo Lima e ter sido orientada a procurar outra maternidade por conta própria.

Na cidade de Salvador, a situação também é alarmante. Lá, o aborto vem sendo a primeira causa de morte materna há várias décadas. De acordo com os dados fornecidos pela CPI da Mortalidade Materna (relatório final, 2001), 65, 9% das vítimas eram dependentes do serviço público de saúde. Sabe-se que 98% das mortes maternas ocorrem por causas evitáveis, convertendo um problema de saúde pública em um problema de justiça social de grandes proporções. Uma coisa é certa: o nosso sistema de saúde tem falhado sistematicamente em evitar essas mortes. Esses dados apontam para o fato de que as mulheres no Brasil morrem por causas evitáveis dentro dos serviços de saúde.

Há três semanas, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou resolução reconhecendo que a mortalidade e a morbidade materna evitáveis representam violação ao direito humano à vida, saúde, educação, dignidade e informação. A mortalidade materna passa a ser incluída no rol dos temas tradicionais de direitos humanos, como a tortura, a pena de morte, os desaparecimentos forçados durante regimes militares e a violência contra as mulheres. Tal decisão é histórica e abre precedente importante em matéria de direitos humanos: a responsabilização internacional dos governos pelos altos índices de mortalidade materna, principalmente quando tais índices tiverem um impacto desproporcional sobre os grupos de mulheres mais vulneráveis, em função de sua raça, escolaridade, classe social, status civil e local de moradia.

As condições de vida ¿ sociais, econômicas e culturais ¿ das mulheres irão determinar o seu grau de vulnerabilidade à morte materna. A vulnerabilidade será dada em função também da autonomia e capacidade das mulheres para o exercício de escolhas sexuais e reprodutivas.

A falta de notificação dos óbitos maternos e o mau preenchimento desse instrumento, fornecendo as circunstâncias das mortes maternas, contribuem para a manutenção da cultura da invisibilidade do problema.

As causas estão relacionadas, muitas vezes, às falhas do Estado em prevenir a ocorrência de morte materna pelos serviços de saúde, das políticas públicas, como a falta de acesso a serviços de planejamento familiar, ao serviço pré-natal de qualidade, a serviços de emergência obstétrica e a serviços de qualidade. Por outro lado, a situação de ilegalidade do aborto no Brasil contribui para agravar os riscos de morte e morbidade das mulheres por essa causa.

Trazer um tema tradicionalmente abordado pela saúde pública para a perspectiva dos direitos humanos é um passo importante para dar visibilidade e cobrar políticas eficazes. O Estado deve proteger e garantir os direitos humanos das mulheres durante a gravidez, parto, puerpério e o abortamento. O caso do Rio de Janeiro demonstra que é necessária ampla campanha de informação à população sobre os seus direitos relacionados à mortalidade e morbidade materna para que casos como os de Manuela criem indignação pública e reivindicações de melhorias na assistência.