Título: Mudança de rumo com o Irã
Autor:
Fonte: O Globo, 21/04/2011, Opinião, p. 7
Em entrevista ao jornal "Washington Post", em 5 de dezembro, a recém-eleita presidente expressava seu repúdio às violações de direitos humanos no Irã, qualificando como medieval a sanção de apedrejamento à acusação de adultério, referindo-se ao polêmico caso da prisioneira iraniana Sakineh Ashtiani. Pela primeira vez, a presidente Dilma externava divergências com relação ao ex-presidente Lula, em aberta crítica à equivocada abstenção do Brasil em relação à não condenação do Irã no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Rompendo com uma política internacional de 8 anos - cujo lema era a abstenção da censura de países violadores de direitos humanos em nome de um "diálogo construtivo" e da "cooperação internacional" -, o Brasil votou a favor da designação de um relator especial para investigar denúncias de violações de direitos humanos no Irã. A medida foi aprovada pelo Conselho de Direitos Humanos, por 22 votos a favor, 7 contra e 14 abstenções, em 24 de março. A embaixadora do Brasil junto à ONU esclareceu: "O voto não é contra o Irã, mas a favor do sistema de direitos humanos da ONU", acrescentando que o Brasil encorajará a "aplicação dos mesmos padrões a outros possíveis casos de não cooperação com o sistema de direitos humanos da ONU".
O voto afirmativo do Brasil sinaliza para sensíveis transformações na política externa brasileira -- celebradas pela cúpula da ONU e por organizações não governamentais de defesa de direitos humanos.
De um lado, honra o dever constitucional de conferir prevalência aos direitos humanos nas relações internacionais (princípio fundamental consagrado no artigo 4º, II da Constituição Federal), buscando coerência, consistência e não seletividade no trato de violações a direitos. A constante abstenção do Brasil em censurar graves violações a direitos no Irã, na Coreia do Norte, em Cuba e no Sudão, em prol de um "solidarismo Sul-Sul", caracterizava as incongruências e anacronismos da política externa brasileira em matéria de direitos humanos. Pesquisas demonstram que a denúncia pública a graves violações a direitos aliada a pressões internacionais (sobretudo da sociedade civil internacional) têm tido o impacto de gerar o power of embarrassment (poder do constrangimento), fomentando avanços na política de proteção aos direitos humanos. A estratégia do name and shame - baseada na denúncia e na consequente vergonha pública - tem se mostrado exitosa na desestabilização de regimes autoritários e violadores de direitos. No contexto latino-americano, esta estratégia foi capaz de fragilizar os regimes autoritários e permitir a transição democrática - basta realçar o impacto de importantes relatórios da Comissão Interamericana sobre a repressão no Chile (1973) e desaparecimentos forçados na Argentina (1979), a contribuir com o processo de democratização na região. Improvável é transformar regimes autoritários por meio do silêncio da comunidade internacional e de um ineficaz "diálogo construtivo" com herméticos estados ditatoriais.
Por outro lado, o voto afirmativo acena à nova postura do Brasil, que se insere como ator global no contexto internacional contemporâneo, assumindo uma crescente responsabilidade internacional. Como uma das lideranças emergentes do hemisfério Sul, o Brasil tem fomentado novas alianças, como o Brics (Brasil, Rússia, China e Índia); tem lançado esforços para fortalecer o Mercosul e para criar a Unasul; e tem denunciado o protecionismo dos países ricos (por exemplo, no caso dos subsídios agrícolas). A esta política conjuga-se todo empenho do Brasil pela democratização das instâncias decisórias internacionais, compreendendo os esforços para a reforma do Conselho de Segurança; o protagonismo na criação dos G20 (com a ampliação do G7 para incluir países emergentes); as demandas para reformar instituições como o FMI e o Banco Mundial; e outras iniciativas voltadas ao aperfeiçoamento do multilateralismo e ao fortalecimento da voz do Hemisfério Sul.
Espera-se que o voto afirmativo do Brasil inaugure um novo capítulo da política externa brasileira em matéria de direitos, que seja capaz de condenar graves violações de direitos, onde quer que elas ocorram e independentemente de seus violadores, em defesa das vítimas, contribuindo, assim, para a ética dos direitos humanos, para a maior credibilidade das organizações internacionais e para a afirmação do Estado de Direito internacional na ordem contemporânea.
FLÁVIA PIOVESAN é professora da PUC-São Paulo.