Título: Lares comandados por crianças
Autor: Schmidt, Selma ; Almeida, Cássia
Fonte: O Globo, 30/04/2011, O País, p. 9

RIO e RECIFE. Num país que tem hoje a sétima economia do mundo, o Censo revela um cenário ainda preocupante: existem 132.033 domicílios no país chefiados por crianças entre 10 e 14 anos. O Sudeste é a região com a maior concentração no número de responsáveis nesta faixa etária, com 62.320 casos.

- Proporcionalmente ao total de 57 milhões de domicílios no país, esse número (132 mil) não é expressivo. Entretanto, reflete outra realidade no país: a presença de trabalho infantil na sociedade brasileira. É mais uma evidência da existência do trabalho infantil e que, em muitas famílias, é a principal fonte de renda - afirmou o presidente do IBGE, Eduardo Pereira Nunes.

Foi a primeira vez que o IBGE investigou a responsabilidade pelo lar nessa faixa etária. O Censo mostrou ainda que outros 661.153. domicílios são chefiados por jovens de 15 a 19 anos. No Censo 2000, o instituto agrupou a faixa etária de 10 a 19 anos e encontrou 340.319 domicílios chefiados por crianças e jovens dessa idade. Ou seja, hoje há ainda mais lares sob a responsabilidade de brasileiros nessa faixa etária.

Rafael Rocha de Melo, de 14 anos, trabalha desde os treze para ajudar a sustentar a mãe. Às portas do mercadinho onde ele faz ponto com seu carrinho de mão para sobreviver carregando frete, todos sabem de sua história. Diariamente, antes mesmo de ir para casa, a mãe já está no local para pegar o dinheiro do menino. Com a saúde debilitada pelo alcoolismo, ela depende do trabalho do garoto para comprar comida, bebida e remédio.

O garoto foi localizado pelo GLOBO na Favela do Coque, no bairro de Afogados, na Ilha Zona Bezerra, em Recife, onde mora. A comunidade fica entre um manguezal poluído e a linha férrea.

Rafael passa a manhã no local onde mora, um aglomerado de barracos estreitos de madeira, papelão e zinco. Está na terceira série do ensino fundamental e estuda à noite. Todas as tardes, ele fica próximo ao mercado público e a um mercadinho, para ganhar a vida carregando feiras. Chega a fazer sete viagens por dia, e recebe entre R$6 e R$7 por cada saída.

- Felizmente, o dinheiro é só para a minha mãe. Os meus irmãos já saíram de casa e agora só eu a ajudo. Da família de nove irmãos, só restam quatro vivos - contou Rafael.

Os números do IBGE mostram que no Nordeste, 27.116 domicílios são chefiados por crianças de 10 a 14 anos. No Rio de Janeiro, são 12.272 lares nessa condição (0,23% do total) e, em São Paulo, 130.442 domicílios chefiados por criança (0,29% do total). A maior média do país é do Amapá, com 582 (0,37%).

- Essas informações geram preocupação, mesmo se houvesse apenas uma criança chefiando uma casa. A situação causa espanto e mostrar a falta de políticas públicas adequadas para o núcleo familiar - observou o promotor Rodrigo Cezar Medina da Cunha, coordenador da Promotoria da Infância e da Juventude do Ministério Público Estadual do Rio.

Segundo Cunha, as principais causas deste problema são a desestruturação das famílias e a negligência dos pais. O promotor lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê punições para os responsáveis.

- O fato de que uma criança está chefiando uma casa já revela a violação de direitos dela. É preciso exigir uma maior atuação do poder público - afirmou o promotor. - Mas o objetivo não é punir os pais. É encaminhar toda a família a programas sociais para que ela possa se fortalecer e acabar com a exploração - completou.

O conselheiro tutelar no Rio, Heber Boscoli, vai além:

- Para conseguir dinheiro, muitas crianças, principalmentes os meninos, entram para o tráfico. E as meninas se prostituem.