Título: Favelas filhas de conjuntos
Autor: Galdo, Rafael; Daflon, Rogério
Fonte: O Globo, 08/05/2011, Rio, p. 19

POPULAÇÃO DO CIDADE ALTA EXPLODE E INVADE TERRENOS VIZINHOS

CIDA NEVES em seu apartamento: as filhas, após se casarem, não conseguiram morar no conjunto

PRÉDIO do conjunto Cidade Alta com a fachada descaracterizada por um puxadinho construído onde deveria haver um jardim para os moradores

ALCILENE PEREIRA com oito das 11 pessoas que moram no apartamento dela

Ex -moradora da Favela da Praia do Pinto, no Leblon, e há 43 anos no conjunto Cidade Alta (erguido em 1969, com 2.597 unidades), em Cordovil, Cida Neves Moraes teve que se despedir de duas de suas filhas, que deixaram o apartamento de dois quartos rumo à favela vizinha de Vila Cambuci. Chana, de 31 anos, e Fabíola, de 28, construíram suas casas na comunidade após se casarem e não terem condições de comprar ou alugar um imóvel no conjunto.

¿ Com o crescimento das famílias, pelo menos 80% dos moradores das favelas em volta da Cidade Alta são filhos e parentes de moradores dos três conjuntos do bairro. No caso das minhas filhas, o apartamento não dava para tanta gente, e minha família foi uma das que invadiram a Vila Cambuci ¿ conta Cida, que deixou a Praia do Pinto após um incêndio que devastou a comunidade em 1968.

Os três conjuntos em Cordovil aos quais Cida se referiu sintetizam o fracasso da política habitacional no Rio. Com 4.077 unidades habitacionais e, numa estimativa modesta, pelo menos 14.600 habitantes, a maioria das famílias chegou ali vinda de favelas removidas na Zona Sul. Os conjuntos foram construídos nas décadas de 60 e 70, e, além de não garantirem a qualidade de vida de seus moradores, deram origem a cinco favelas em seu entorno: Vila Cambuci, Avilã, Parque Proletário, Divineia e Pica-Pau. As comunidades são frutos da explosão demográfica nos apartamentos dos conjuntos, sem que o poder público fosse capaz de alocar as pessoas em moradias formais.

Um desafio às leis da física

Viviane Pereira foi uma das que fizeram o percurso do conjunto para a favela. Há nove anos, após se casar e ter um filho, ela trocou o dois-quartos-e-sala da família no Cidade Alta, onde na época já residiam nove pessoas, por uma casa na Divineia. E, mesmo com a saída dela, a divisão de espaço no apartamento desafia as leis da física. Hoje são 11 pessoas no lugar. Cabe a Alcilene Pereira, irmã de Viviane, tentar organizar tanta gente: ela, o marido, quatro filhos, três netos e dois genros, que sustentam a casa com renda em torno de mil reais por mês.

¿ No meu quarto dormimos eu e meu marido na cama, o meu neto de 1 ano entre nós dois, e a minha filha de 14 no chão. Na sala, a minha filha, meu genro e meu outro neto. E, no outro quarto, meu filho no chão, minha filha e o marido dela na cama e meu neto no carrinho de bebê. A dificuldade maior é na hora de tomar banho de manhã. É uma bagunça ¿ conta ela, auxiliar de serviços gerais desempregada.

No Cidade Alta, Alcilene e seus vizinhos não vivem em condições tão melhores que seus parentes na favela. O conjunto é repleto de puxadinhos, que tomaram o lugar dos jardins na frente dos prédios. Os corredores dos edifícios ou estão escuros ou iluminados graças a centenas de ¿gatos¿ de energia elétrica. Faltam serviços básicos, como uma melhor coleta de lixo e áreas de lazer. A presença do tráfico de drogas, embora atualmente de forma menos ostensiva, sempre se faz notar. Tudo o que leva o próprio conjunto, muitas vezes, a se ver e ser visto como uma favela.

A organização nos prédios também é precária. Na maioria dos blocos não se paga condomínio. Dos três conjuntos de Cordovil, a situação mais precária é a do Porto Velho. Construído pela Companhia Estadual de Habitação (Cehab) em 1970, ele soma mil unidades, em 45 blocos verdes-musgo, à beira da Avenida Brasil. De tão degradado, ganhou o apelido de ¿pé sujo¿. De acordo com o síndico André Miranda, boa parte dos prédios teve a luz e a água cortadas por falta de pagamento.

¿ É uma cultura que foi trazida da favela (a maioria dos moradores veio da Praia do Pinto). Dos 45 blocos, dez têm algum tipo de organização e procuram pagar as contas. Muitos moradores venderam seus apartamentos e foram morar nas favelas vizinhas para não pagarem nada. Quase toda a comunidade do Pica-Pau foi formada por ex-moradores e filhos deles.

Numa situação um pouco melhor, com 480 unidades em 30 edifícios, está o conjunto Vista Mar, entre o Cidade Alta e o Porto Velho. Com estrutura mantida por 28 funcionários, exibe uma curiosa diferença de status em relação aos demais, alimentada pelos próprios moradores.

¿ Nós somos o pé limpo, o lá de baixo (Porto Velho) é o pé sujo e o lá de cima é o pé mal lavado ¿ disse, sem se identificar, um dos moradores do Vista Mar, construído pelo Banco Nacional de Habitação (BNH).

O conjunto, explica o síndico dos 30 blocos, Carlos Silva, seria moradia preferencialmente para bancários, mas muitos se recusaram a morar lá quando viram os outros dois conjuntos:

¿ Ainda hoje, muitos moradores do Vista Mar não gostam de se misturar.

Uma senhora do Vista Mar reforçou o clima de separação:

¿ Gosto de eles lá; e eu, cá ¿ disse, sem dar muita conversa.

Prova de que os preconceitos ligados à moradia vão além da divisão entre favela e asfalto.

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