Título: Um teto de cem anos
Autor: Galdo, Rafael; Daflon, Rogério
Fonte: O Globo, 08/05/2011, Rio, p. 18

Cem anos depois do início das obras do primeiro conjunto habitacional do governo federal no país - a Vila Operária Marechal Hermes -, mais de um milhão de pessoas vivem nesse tipo de moradia na cidade do Rio, o que representa 17% da população (6.320.446 de habitantes, segundo o Censo 2010 do IBGE) e se aproxima dos cerca de 1,1 milhão que vivem em favelas. Levantamento do GLOBO mostra que 304 mil unidades habitacionais populares foram construídas na capital ao longo deste um século, o que não resolveu o problema da moradia, como revela esta série de reportagens que começa a ser publicada hoje. O déficit de domicílios no Rio ultrapassa 221 mil unidades, enquanto políticas atuais como o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, não conseguem atender à demanda.

- A partir dos anos 90, com a reurbanização de favelas em foco, os conjuntos tiveram a importância minimizada pelos governos, pelas universidades e pela mídia, impedindo políticas mais amplas e enfraquecendo o debate sobre a habitação social - disse a arquiteta Luciana Corrêa do Lago, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ.

O começo da política habitacional nacional lançou uma quase sempre errante aventura de erguer moradias populares no Brasil. Em 1º de maio de 1911, o então presidente Hermes da Fonseca instalou a pedra fundamental da Vila Operária Marechal Hermes (numa homenagem a ele mesmo). Na época um longínquo subúrbio, o local deveria receber 738 casas e sobrados para 1.350 famílias, além de creches, quatro escolas, maternidade, hospital e outros serviços. Três anos depois, porém, quando a vila foi ocupada, a realidade dava forma a apenas dois colégios e 170 casas (20% do previsto), como relata o historiador Alfredo Oliveira.

- Hermes enfrentou resistências, mas foi pioneiro. Previu toda a infraestrutura para a autossuficiência do lugar, como uma estação de trem. No fim de 1913, no entanto, as obras ficaram paradas, após o senador Pinheiro Machado promover a demissão do diretor da comissão da construção da vila, Palmyro Pulcherio. E, depois de entregue, a vila passou a ser boicotada pelos governos liberais posteriores, até cair no completo esquecimento - conta Oliveira. - A primeira política habitacional do país já nasceu descontínua.

Getúlio retoma a obra de Hermes

Hoje, grande parte dos casarões da vila, na área central do atual bairro de Marechal Hermes, está em ruínas ou descaracterizada, como símbolo de uma cidade que dá as costas para a sua história. Sobrados foram invadidos para dar lugar a comércios improvisados. Um deles abriga seis famílias, como num cortiço. Apesar disso, algumas ruas ainda remetem ao início do século XX e foram locação para filmes como "A suprema felicidade", de Arnaldo Jabor, e "Chuva de verão", de Cacá Diegues.

O passado é motivo de orgulho para antigos moradores, como Ruth Hallais Motta, de 92 anos, que nasceu num dos casarões, em 1919. Filha de um escrivão de polícia, ela conta que a maioria das primeiras casas foi entregue a funcionários públicos. E lembra, em detalhes, os costumes do bairro que ganhava formas em torno dos sobrados e da estação.

- Marechal era um lugar chique. No trem, quando as meninas daqui chegavam a Madureira, de tão bem vestidas, eram logo reconhecidas: "Lá vêm as moças de Marechal" - conta dona Ruth. - Era na estação de trem que as meninas encontravam os melhores partidos.

Dona Ruth fala de um tempo romântico no bairro, que até hoje guarda ruas largas e planejadas.

- Aos 12 anos, fui a primeira menina a andar de bicicleta em Marechal. Foi um escândalo. Outra que deu muito o que falar foi a mulher de Hermes (Nair de Teffé), professora de uma das escolas daqui. Ela era linda, 31 anos mais nova que o presidente! E não há dúvidas sobra a qualidade dos casarões. Ninguém conseguia enfiar um prego nas paredes - diz ela, que morou 22 anos num casarão da antiga Rua Sete de Setembro, até se casar e continuar no bairro.

Da infância de dona Ruth até o bairro chegar às dimensões imaginadas pelo marechal Hermes, seriam necessários mais 40 anos. Só em 1931 foram retomadas as obras, já na Era Vargas. Um ano depois de Getúlio assumir a Presidência, a posse da vila foi passada ao Instituto de Previdência dos Funcionários Públicos da União (IPFPU), que encontrou um cenário desolador: 128 casas desocupadas e muitas inacabadas. Nessa fase foram construídas 300 casas, o Cine Lux, hoje em ruínas, e o Hospital Carlos Chagas.

- É como se Getúlio retomasse a obra de Hermes - diz Oliveira.

Só nos anos 40 e 50 surgiriam novos empreendimentos habitacionais do governo no bairro, concomitantes aos nascentes projetos de moradia dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs). Com a transformação do IPFPU em Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado (Ipase), Marechal ganha 589 casas, um ginásio, uma maternidade e o Teatro Armando Gonzaga, projeto de Afonso Eduardo Reidy, com jardins de Burle Marx.

Nessa fase foram erguidos três novos conjuntos no lugar: o Comercial, de 1948; o Três de Outubro, em 1949; e o do Ipase, de 1954. Ao redor da Vila Operária, eles compõem um belo um retrato da habitação social da primeira metade do século XX.