Título: Mandato sob contestação
Autor: Queiroz, Silvio
Fonte: Correio Braziliense, 04/08/2009, Mundo, p. 20

Presidente reeleito é reempossado em meio a sinais de fratura no regime e mesmo em sua facção política

Um punhado de ausências representativas, além de outras circunstâncias, marcaram a diplomação de Mahmud Ahmadinejad como presidente reeleito do Irã e realçaram mais uma vez as dificuldades que terá nos próximos quatro anos. Faltaram à cerimônia personalidades de peso, cuja presença seria normal para demonstrar a coesão do regime, como os ex-presidentes Mohammad Khatami e Ali Akbar Hashemi Rafsanjani ¿ em especial o último, que preside dois órgãos importantes na estrutura do regime, a Assembleia dos Peritos e o Conselho de Expedientes. E, ao contrário da tradição, a solenidade não foi exibida pela TV.

¿O povo iraniano votou a favor da luta contra a arrogância, votou pela confrontação das necessidades dos despossuídos e pela promoção da justiça¿, discursou o líder religioso supremo, o aiatolá Ali Khamenei, antes de diplomar e abençoar o chefe de Estado. O resultado oficial da eleição de junho foi contestado pela oposição reformista, em uma onda de protestos sem precedentes nos 30 anos de República Islâmica, sufocada por ordem de Khamenei. Mas mesmo com aquele que é considerado seu grande protetor, Ahmadinejad mostrou dificuldades de acertar o passo: imagens de uma emissora mostram o aiatolá estendendo a mão para o presidente, que entretanto se inclina e beija o ombro do líder.

Khamenei empenhou seus poderes, na última semana, para impor ao presidente o constrangimento público de recuar da nomeação de um amigo e aliado próximo para a posição de primeiro vice-presidente. Esfandiar Rahim Meshaie, fulminado pela facção conservadora e radical do regime por ter se referido a iranianos e israelenses como ¿povos amigos¿, acabou recolocado por Ahmadinejad na posição de seu chefe de gabinete. Foi o bastante para alimentar um rumoroso bate-boca na reunião ministerial do último domingo, após a qual circulou o rumor ¿ desmentido em seguida ¿ de que quatro titulares teriam se afastado. Ao menos um deles, o ministro da Cultura e Orientação Islâmica, Mohammad Hossein Saffar Harandi, confirmou seu pedido de renúncia, que teria sido negado por Ahmadinejad.

Foi o bastante para a própria imprensa conservadora se referir ao ¿caos político¿, expressão escolhida pelo diário Tehran Emrouz. O Khabar foi ainda mais direto com a manchete: ¿Demissão, o preço de se opor a Ahmadinejad¿. O presidente será empossado amanhã pelo Parlamento e terá 10 dias para submeter o novo gabinete e seu programa de governo à aprovação. A sólida maioria da facção conservadora poderia sugerir um processo tranquilo, mas ao longo dos primeiros quatro anos o controverso chefe de Estado foi questionado mais de uma vez pelos que seriam seus aliados naturais ¿ ora por ter viajado pela América Latina em meio a dificuldades econômicas, ora pela identificação com uma seita considerada ¿apocalíptica¿(1).

A decisão de recolocar o vice vetado por Khamenei, repetido para com o ministro do Interior, Ali Kordan, destituído pelo Parlamento por ter proclamado um falso título acadêmico, promete criar dificuldades para a aprovação do novo gabinete. Um deputado revelou à emissora britânica BBC que 200 colegas ¿ mais do que a maioria do plenário ¿ escreveu para o presidente recomendando que ele ¿corrija seu comportamento e mostre que acompanha seriamente as opiniões do líder supremo¿.

Não é menor o desafio de Ahmadinejad em suas relações com o establishment religioso, inquieto com a projeção cada vez maior dos militares. Nos seminários de Qom, santuário teológico do xiismo, é debatido entre os clérigos um decreto religioso (fatwa) do grão-aiatolá Hossein Ali Montazeri, cuja autoridade é reconhecida muito além do Irã. Respondendo a um discípulo exilado, Montazeri declara ¿ilegítimo¿ um governo ¿que se sustenta na adulteração de votos¿ (leia trechos).

1 - MESSIAS XIITA O vice destituído de Mahmud Ahmadinejad, como o próprio presidente, tem vínculos com a controversa seita religiosa Hojjatieh, banido no início dos anos 1980 pelo aiatolá Khomeini, fundador do regime islâmico. O grupo dá interpretação considerada heterodoxa para uma crença central do xiismo: o retorno do 12º imã (guia), Mohammad Al-Mahdi. Os imãs são os líderes da facção xiita do islã, vencida pelos rivais sunitas na sucessão do profeta Maomé. É crença comum ao xiismo que o 12º imã retornará no Juizo Final, mas os adeptos da seita acreditam que essa volta seria iminente.

Adversários poderosos

Expoentes do sistema têm divergências com o presidente

Ali Akbar Hashemi Rafsanjani O respeitado aiatolá, que foi presidente da República entre 1989 e 1997, chefia hoje a Assembleia dos Peritos, organismo religioso com poder para eleger, supervisionar e eventualmente destituir o líder supremo. Na eleição de junho, apoiou o reformista Mir Hossein Moussavi. Foi chamado de corrupto por Ahamadinejad e pediu ao líder para censurá-lo publicamente, mas não foi atendido.

Mahmud Hashemi Shahroudi O aiatolá chefia o Judiciário e é considerado, pelas credenciais teológicas, um dos candidatos naturais a suceder Ali Khamenei na liderança. Embora alinhado com a facção conservadora, Shahroudi tem procurado demonstrar equidistância. Foi dele a ordem para libertar 140 detidos nos protestos contra a reeleição de Ahmadinejad e fechar uma prisão onde os presos sofreram tortura.

Ali Larijani Político veterano e de grande projeção, considerado muito próximo ao aiatolá Khamenei, embora não integre o clero. Conservador, porém com fama de pragmático, preside o Majlis (Parlamento) e criticou explicitamente a violenta repressão policial e paramilitar contra manifestações pacíficas, assim como as prisões em massa e a censura imposta aos meios de comunicação.

Israel pode ter baixa política

¿Se eu for indiciado por corrupção, vou renunciar¿, afirmou ontem o chanceler israelense, Avigdor Lieberman, respondendo à sugestão da polícia para que a Procuradoria-Geral abra processo contra ele por lavagem de dinheiro, suborno, obstrução da Justiça e assédio a uma testemunha. O líder do partido de ultradireita Yisrael Beiteinu é acusado de montar uma rede de empresas e contas-fantasmas que movimentaram uma soma da ordem de R$ 5 milhões. A investigação durou 13 anos e é a mais longa já feita no país.

A palavra final sobre a abertura do processo está nas mãos do procurador-geral Menahem Mazuz, que já recebeu o inquérito policial e deverá analisá-lo nas próximas semanas. Segundo o chanceler, caso indiciado, ele renunciará também à liderança do partido. Apesar da seriedade das acusações, Lieberman acredita que, assim como em outras investigações envolvendo seu nome, a atual ¿não vai dar em nada¿.

Não bastasse o escândalo de Lieberman, ontem o governo de Israel foi alvo de críticas severas da comunidade internacional devido ao despejo de duas famílias palestinas que viviam em Jerusalém Oriental. No domingo, 53 moradores foram expulsos pelas forças de segurança israelenses, depois que a Suprema Corte determinou que os terrenos pertenciam originalmente a famílias judias. Os Estados Unidos, que vêm insistindo com Israel sobre a necessidade de suspender a colonização judaica nos territórios ocupados, enviaram carta criticando um movimento que ¿vai no sentido oposto¿ do processo de paz. O governo brasileiro, em nota, lembrou que durante a visita de Lieberman ao país, na semana passada, o ministro Celso Amorim ¿explicitou que o Brasil espera que Israel se abstenha de tomar medidas que prejudiquem o progresso das negociações¿.

Trechos

Hossein Ali Montazeri

Decreto religioso (fatwa) sobre a legitimidade do governo de Mahmud Ahmadinejad

A proteção do regime não é essencial nem, por si só, obrigatória, particularmente quando o regime se torna sinônimo de uma pessoa.

É evidente que não se pode proteger ou fortalecer o regime islâmico por meio de ações injustas e anti-islâmicas, uma vez que a própria finalidade de um regime (islâmico) advém da necessidade de promover a justiça e proteger os direitos (do povo). De maneira sucinta, da necessidade de implementar os mandamentos do islã.

Um regime que se sustenta em golpes de cassetete, injustiças, violações de direitos, usurpação e adulteração de votos, assassinato, subjugação, encarceramento, torturas medievais e stalinistas, repressão, censura, detenção da elite pensante com base em acusações falsificadas e extração de confissões inverídicas ¿ especialmente sob coerção ¿ é condenável e inválido perante a religião e a razão.

O país pertence ao povo, não a mim nem a você. As decisões pertencem ao povo. Os governantes e dirigentes políticos são servidores do povo, que deve ser livre para se reunir e defender seus direitos pela palavra falada ou escrita.

O xá escutou a voz da revolução quando já era tarde demais para ele. Esperemos que aqueles que hoje respondem pelo Irã não demorem tanto, que mostrem flexibilidade face às demandas da nação.