Título: Engarrafamento na fronteira
Autor: Oliveira, Eliane ; Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 13/05/2011, Economia, p. 21

Com a arma apontada para a Argentina, o Brasil suspendeu do processo de licenciamento automático as importações de automóveis prontos de todo o mundo na terça-feira. Com isso, o desembaraço desses produtos, antes imediato, agora ocorrerá em até 60 dias. Foi uma resposta ao protecionismo dos argentinos, que poderão deixar de vender ao mercado brasileiro algo em torno de US$5,2 bilhões ao ano, segundo estimativas de técnicos do governo brasileiro.

Como a medida é considerada uma salvaguarda - prevista na Organização Mundial do Comércio (OMC) -, pelas leis internacionais de comércio a restrição teve de ser estendida a todos os fornecedores, para não ser caracterizada como discriminatória. Além da Argentina, haverá reflexos nas compras de veículos de México, China, Europa, Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão, o que pode dar um alívio à balança comercial, tendo em vista o forte crescimento das importações de veículos.

O governo Cristina Kirchner divulgou ontem à noite nota oficial, assinada pela secretária de Indústria, Débora Giorgi, na qual afirma que "a aplicação de licenças não automáticas para o setor de automóveis foi adotada de forma intempestiva e sem aviso prévio, afetando assim 50% do total do comércio bilateral". A Casa Rosada havia recebido na véspera a carta enviada pelo ministro de Indústria e Comércio Fernando Pimentel.

A secretária afirmou que quando a Argentina aplicou, em fevereiro, 200 novas licenças não automáticas, "informou o Brasil dez dias antes do anúncio oficial, e a medida entrou em vigência somente 30 dias depois". Para ela, esse comportamento "atenta contra o diálogo natural entre os sócios majoritários do Mercosul".

Autopeças e vinhos podem ser incluídos

Segundo fontes da secretaria, a Casa Rosada foi informada de demoras na entrada de veículos da Toyota e da Mercedes Benz no Brasil. Para o governo Kirchner, disseram fontes, estão por trás da medida os "poderosos industriais de São Paulo".

Conforme antecipou O GLOBO na semana passada, as autoridades brasileiras estão irritadas com a Argentina, que mantém sob o regime de licença não automática 600 itens, a maioria exportada pelo Brasil. Por isso, decidiram retaliar.

A balança comercial automotiva (veículos e autopeças) brasileira vem se deteriorando: até 2008 era superavitária em US$10 bilhões, mas em 2010 teve déficit de US$6 bilhões. De 2005 até agora, a exportação de veículos passou de 30% para 14% da produção nacional. Segundo o Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), no primeiro trimestre deste ano as importações de automóveis subiram quase 50%. As compras oriundas da Argentina cresceram 40%; as da Coreia do Sul, 46%; e as da Alemanha, mais de 75%.

O governo tomou a medida, que provocou a retenção de caminhões na fronteira entre os dois países, sem confirmá-la oficialmente. Mas um alto funcionário avisou que, "em princípio", as licenças deixam de ser automáticas para automóveis, dando a entender que, se não houver uma resposta positiva dos vizinhos, outros itens, como autopeças, vinhos e lácteos, podem ser incluídos na nova regra.

Segundo técnicos envolvidos no assunto, até o fim da tarde de ontem, não houve contatos entre autoridades de primeiro escalão dos dois países. Debora Giorgi tentou falar por telefone com Pimentel, que não a atendeu e repassou a ligação à secretária de Comércio Exterior, Tatiana Prazeres.

Para a Argentina, o superávit de US$4 bilhões registrado pelo Brasil no comércio bilateral confirma a necessidade de manter o protecionismo - motivado pela queda do superávit fiscal, de US$16,8 bilhões em 2009 para US$12 bilhões no ano passado.

Risco de faltar veículos é pequeno

Representantes das montadoras minimizaram o impacto da medida, e alguns disseram ter o compromisso informal do governo de que ela só seria aplicada à Argentina, de onde vêm o Siena (Fiat), o Agile (GM) e o Space Fox (Volks). A Anfavea, que representa as montadoras, diz que a medida não vai interromper as importações, apesar de elevar a burocracia. Sobre um possível prejuízo aos consumidores afirma que, sem o teor oficial da medida, não seria possível avaliar. Para o consultor Luiz Carlos Augusto, da Jato Dynamics do Brasil, esse risco seria pequeno devido à elevada oferta de veículos.

A Abeiva, que reúne as importadoras de veículos, não comentou a decisão. Mas representantes de algumas empresas disseram ter recebido "a garantia" de que as compras de outras regiões não seriam afetadas.

- Fizemos hoje um teste, e só houve mesmo problema na alfândega com a Argentina - disse um empresário.