Título: Paquistão e EUA em encruzilhada estratégica
Autor: Eichenberg, Fernando
Fonte: O Globo, 15/05/2011, O Mundo, p. 36

Relação entre os dois países é abalada por acusações de jogo duplo, aproximação com a China e dependência econômica

MANIFESTANTES PEDEM explicações do lado de fora do Parlamento paquistanês, em Islamabad, sobre operação de Abbottabad: militares nutrem laços com líderes insurgentes

WASHINGTON. Com a sua morte, o líder terrorista Osama bin Laden conseguiu um último feito ruinoso: colocar mais veneno nas já complicadas relações entre os Estados Unidos e o Paquistão. Desde pelo menos 2005, o chefe da rede al-Qaeda vivia tranquilamente refugiado em sua residência paquistanesa em Abbottabad, a poucas centenas de metros da academia que abriga a elite militar do país. Não é de hoje que os americanos acusam o jogo duplo praticado por militares e facções do serviço de inteligência do Paquistão ¿ no apoio partilhado entre Washington e grupos terroristas -¿, e a Casa Branca optou por não informar o governo de Islamabad sobre a operação de caça a Bin Laden em seu território.

Agora, ressoam questionamentos sobre o futuro da emblemática parceria entre os dois países. Ontem, o Parlamento do Paquistão condenou a operação americana que matou Bin Laden. Além disso, pediu uma revisão das relações com o país. Os legisladores alertaram ainda para a possibilidade de o Paquistão cortar linhas de abastecimento para as forças americanas no Afeganistão, caso haja mais ataques desse tipo.

¿Casa Branca não tem escolha¿, diz analista

Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, os EUA investiram com maior intensidade, política e financeira, na costura de uma aliança mais sólida com o Paquistão, no objetivo de usá-lo para conter a ameaça terrorista talibã no Afeganistão e impedi-lo de estabelecer ligações perigosas com potenciais inimigos na região ¿ trata-se do único país islâmico detentor de arma nuclear, e com uma população de forte sentimento antiamericano. Nos últimos dez anos, os EUA destinaram ao país cerca de US$20 bilhões, sendo a maior fatia do montante absorvida pelos militares locais.

Em permanente tensão com a Índia, por causa dos conflitos na província fronteiriça da Cachemira, militares paquistaneses e seu braço de inteligência, o serviço secreto ISI (na sigla em inglês), não cortaram os laços com milícias talibãs e grupos terroristas como o Lashkar-e-Taiba, responsável pelos atentados de Bombaim (2008). Por outro lado, o país se tornou dependente dos bilhões de dólares americanos desovados a cada ano em ajuda militar e econômica, e a luta contra o terrorismo passou a ser vista como um excelente negócio, embora também tenha acarretado perdas. No ano passado, 1.200 pessoas morreram no país em atentados suicidas de homens-bomba, e mais de três mil militares paquistaneses foram vítimas em conflitos.

O atentado reivindicado pelo Talibã na sexta-feira ¿ a primeira grande ação do grupo após a morte de Bin Laden ¿ deixou ainda mais clara a ambiguidade da relação entre os dois países. Muitos moradores de Shabqadar ¿ onde ocorreu o atentado ¿ não hesitaram em culpar o aliado americano pela violência que matou dezenas de pessoas.

Para Christine Fair, especialista em Ásia do Centro de Estudos para a Paz e a Segurança, da Universidade Georgetown, os EUA têm apenas uma alternativa no quadro estratégico com Paquistão.

¿ A Casa Branca simplesmente não tem escolha, precisa reabilitar a relação. O Paquistão tem armas nucleares, existe a guerra contra o terrorismo no Afeganistão... É preciso manter a presença no país, para poder monitorar o que estão fazendo. Abandonar o Paquistão seria algo incompreensível, um grande erro ¿ avalia.

Na opinião dela, os EUA não podem estranhar o jogo duplo e acusar o o governo paquistanês de traição.

¿ Sempre houve interesses diferentes. E eles estão fazendo o que sempre disseram que iriam fazer, que é de seu interesse. Os EUA acharam que poderiam ¿comprar¿ o Paquistão, ofereceram muitas coisas e acreditaram que poderiam mudar a seu modo. Mas não foi o que aconteceu ¿ diz Christine.

EUA desconfiam de aproximação com China

No tabuleiro geopolítico, a Casa Branca vê com desconfiança a aproximação política e econômica de Islamabad com a China ¿ US$35 bilhões em acordos comerciais recentemente firmados e recíprocas declarações de amizade ¿ ao mesmo tempo em que estreita a parceria americana com Nova Délhi, vide o recente apoio de Washington às pretensões da Índia por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Para Edward Turzanski, analista do Instituto de Pesquisas em Política Externa, os EUA se encontram numa delicada encruzilhada estratégica:

¿ Nós damos ao Paquistão US$1,3 bilhão por ano, e eles nos empurram cada vez mais para os braços da Índia. E agora se aproximam mais e mais dos chineses. Eles não podem presumir que não chegaremos ao ponto de um dia dizer: ¿Vocês não são internamente confiáveis, estão se aliando a Pequim e nos levando a reforçar nossa relação com a Índia¿. É um período muito perigoso.

Turzanski recomenda muita ¿cabeça fria¿ por parte do governo e do Congresso americanos para retomar a relação com o Paquistão, abalada pelo contexto da morte de Bin Laden.

¿ O Paquistão faz jogo duplo. Seu presidente (Asif Ali Zardari) não tem controle sobre os militares e os serviços de inteligência. E estamos num momento em que o governo Barack Obama sinaliza com a saída de tropas do Afeganistão. É preciso muita atenção ¿ ressalta.

Como disse a secretária de Estado, Hillary Clinton, em uma resumida definição na semana passada, ¿não é sempre uma relação fácil¿.