Título: Nem a morte separa
Autor: Figueiredo, Janaína
Fonte: O Globo, 15/05/2011, O Mundo, p. 34
Viúva e filho de ex-presidentes despontam na corrida presidencial da saudosista Argentina
Correspondente ¿ BUENOS AIRES
Duas semanas antes de morrer, o expresidente argentino Nestor Kirchner (2003-2007), que acabara de ser submetido a uma angioplastia, disse a dois militantes de seu movimento que estava otimo e pediu que nao insistissem na possibilidade de reeleicao da presidente Cristina Kirchner. As palavras de Nestor . -"Se nao morrer antes, o candidato sou eu"- antecipariam um cenário jamais imaginado pela Casa Rosada. Kirchner faleceu em 27 de outubro do ano passado, vitima de um ataque cardiaco, e desde entao Cristina e considerada a unica pessoa capaz de ocupar o lugar deixado por ele nas eleicoes presidenciais de outubro proximo. Um de seus principais adversarios sera o deputado Ricardo Alfonsin, filho do ex-presidente Raul Alfonsin (1983-1989). Como no caso da presidente, a candidatura de Ricardito, como e chamado o deputado, nao estava nos planos da Uniao Civica Radical (UCR) e so foi apontada como a melhor opcao apos a morte de seu pai, em abril de 2009. Mergulhados numa nova campanha eleitoral, peronistas e radicais se renderam ao culto aos mortos, que nunca esteve tao vivo na Argentina.
Apesar de incluir a participacao de outros candidatos que nao foram protagonistas de recentes velorios historicos, como a deputada Elisa Carrio e o ex-presidente Eduardo Duhalde (2002-2003), a disputa entre a viuva de Kirchner e o filho de Alfonsin sera um dos duelos centrais. Na visao do analista Carlos Fara, "esta claro que se Nestor e Raul continuassem vivos, Cristina e Ricardo nao seriam candidatos". A presidente continua fazendo certo misterio e, na semana passada, chegou a dizer nao estar "morrendo (de vontade) por voltar a ser presidente". Mas seus assessores garantem que ela ja esta em campanha.
Até abril de 2009, Ricardito era simplesmente o filho de Alfonsin. O velorio de seu pai marcou o inicio de uma carreira politica sustentada, em grande medida, na semelhanca fisica entre ambos. Ricardito e considerado quase uma reencarnacao de Alfonsin: nas expressoes e ate nos gestos, como aparecer em fotos com os punhos cerrados.
-Os argentinos convivem permanentemente com os mortos, somos um povo que arrasta lutos sociais e politicos nao resolvidos . explica o jornalista Claudio Negrete, autor do livro "Necromania, historia de uma paixao argentina".
Nestor vira nome de restaurante e vinho
Desde a morte de Evita, em 1952, e de Juan Domingo Peron, em 1974, ambos estao presentes em em todas as campanhas peronistas atraves de imagens, frases, marchinhas e ate mesmo gestos. Mas este ano o morto do partido indubitavelmente sera Nestor Kirchner.
O lema de seus seguidores e "Nestor vive", confirmando a tese de Negrete, para quem "os mortos são usados como instrumentos capazes até mesmo de vencer uma eleição". O novo leit motiv dos kirchneristas virou moda e sera o nome de um restaurante que abrira suas portas no final deste mes, a poucos quarteiroes do palacio de governo.
Sera uma homenagem a um lider que devolveu a politica aos jovens argentinos . diz um dos donos do restaurante, Franco Bindi, de 25 anos.
Perguntado sobre os casos de corrupcao e o fato de o ex-presidente ter deixado uma das maiores fortunas do pais, entre outros capitulos menos glamourosos da historia do kirchnerismo, o jovem argumentou que "corrupção existe em todos os governos".
Nos ultimos meses, Kirchner virou nome de rua, de campeonato de futebol e ate mesmo de vinho. Apos a morte do ex-presidente, um dos tantos cartazes colocados em ruas de Buenos Aires dizia "Nestor no ceu com Peron e Evita, e Cristina com o povo". Para Negrete, "manter Kirchner vivo e uma estrategia politica e eleitoral que comecou no dia de sua morte, no momento em que a familia decidiu manter o caixao fechado". O ex-presidente esta sempre presente nos discursos de Cristina, que ja chegou a dizer: -"ele esta aqui, trabalhando com a gente". A presidente costuma se emocionar quando lembra do marido, nunca abandonou o luto e faz questao de compartilhar sua dor com o povo.
-Hoje acordei meio pra baixo . admitiu Cristina recentemente.
A história dos lideres mortos do peronismo ja virou romance ("Santa Evita" de Tomas Eloy Martinez) e continua provocando debate.
Na última Feira do Livro de Buenos Aires, o jornalista Sergio Rubin apresentou seu livro sobre o papel da Igreja no absurdo periplo percorrido pelo cadaver de Evita ao longo de 18 anos (com direito ate mesmo a enterro clandestino na Italia).
-O drama do cadaver de Evita a transformou em personalidade mundial . opina Negrete.
Em seu livro, o escritor tambem analisa outros casos importantes no pais, entre eles o dos desaparecidos politicos, vitimas da ultima ditadura militar (1976-1983). Os militares esconderam seus corpos, disse o jornalista, como um castigo a seus inimigos. "Foi como dizer aos opositores da ditadura que eles nao tinham, sequer, direito a serem mortos, a ter um enterro e receber flores de seus familiares".
A morte sem corpo visivel dos desaparecidos continua presente entre os argentinos atraves de julgamentos, livros, debates e marchas.
Elas convivem com outras manifestacoes que tambem marcam presenca nas ruas de Buenos Aires e falam sobre outros mortos: as 83 vitimas do atentado a Associacao Mutual Israelense, em 1994, os jovens que nao conseguiram escapar do incendio da boate Cromanon, em 2005, e as centenas de vitimas da violencia nas ruas argentinas.
Resta agora saber se, ate outubro, o orfao da UCR conseguira ao menos incomodar a viuva e seus atuais 60% de popularidade.