Título: Resistência francesa
Autor: Berlinck, Deborah
Fonte: O Globo, 19/05/2011, O Mundo, p. 30

Aprisão por suspeita de estupro do socialista com melhor chance de chegar à Presidência da França em 2012 - Dominique Strauss-Kahn - poderia levar a população e a imprensa francesa a reivindicar maior escrutínio da vida privada de seus dirigentes. O que se assiste hoje na França é exatamente o contrário: políticos e analistas nos debates de televisão dizendo-se aliviados e orgulhosos de que a França tenha um sistema que protege mais a vida privada, diferentemente do que ocorre nos EUA. Nenhuma palavra sobre a mulher que talvez tenha sido vítima de um crime: a camareira de um hotel nova-iorquino.

O jornalista Jean Quatremer, do jornal de tendência de esquerda "Libération", um dos poucos a contestar a a lei do silêncio na imprensa do país, se disse chocado:

- Vimos homens defender homens na TV, uma solidariedade machista em ação. O que me chocou foi não escutar uma palavra sobre a vítima. Mesmo os tenores do Partido Socialista, que deveriam defender o povo, estão defendendo o poderoso diante da vítima. É uma imagem terrível da França - disse.

Segredo de polichinelo. Ormetà - o código de silêncio da máfia italiana. Estas foram algumas das expressões que a imprensa anglo-saxã usou para descrever um tabu na França: aqui, jornalista sério não toca na vida privada de político. Foi assim que François Mitterrand pôde passar anos no poder escondendo que tinha uma filha de uma relação extraconjugal. A filha tinha até proteção policial e sua vida era financiada pelo Estado. Todo mundo na imprensa sabia. Ninguém publicou, até que a foto da menina, Mazzarine, foi estampada na revista "Paris Match", no enterro do pai.

Foi assim também que a socialista Ségolène Royal, candidata à Presidência em 2007, desfilou com o marido, o político François Hollande, na campanha, com se fosse um casal feliz, quando todos na imprensa sabiam que eles estavam separados. Ninguém escreveu sobre isso até ela perder as eleições e anunciar a separação.

E foi assim que Dominique Strauss-Kahn sobreviveu anos na política francesa com apenas a fama de "mulherengo" , quando as histórias que corriam nos bastidores sobre sua atitude impulsiva e insistente em relação a mulheres valeriam vários processo nos EUA, no mínimo, por perseguição sexual.

Maioria no país acredita em tese de complô

Nada causou mais horror na França do que ver a vida de um presidente - Bill Clinton, dos EUA - dissecada pela imprensa e pela Justiça por causa de um caso extraconjugal com uma estagiária da Casa Branca, Monica Lewinski. E isso numa relação consensual, quando ele estava no auge do poder. Até mulheres em cargos políticos na França, como Christine Boutin, partiram em defesa de Clinton, dizendo que o caso mostrava que "ele estava em boa saúde (sexual)". Boutin, agora, parte em defesa de DSK, declarando:

- Eu acho que provavelmente prepararam uma armadilha para ele. Pode ter vindo do FMI, da direita francesa, da esquerda francesa - disse uma das adeptas da tese do complô.

Ela não é a única. Uma pesquisa dois dias depois da prisão de DSK revelou que 57% dos franceses acreditam na tese do complô. E 54% acham que o Partido Socialista ainda pode vencer a eleição presidencial de 2012 mesmo sem Strauss-Kahn como candidato. Políticos partiram em defesa de DSK. O socialista Jack Lang, ex-ministro da Educação no governo Mitterrand, acusou os EUA de estarem perseguindo um "francês conhecido e poderoso". O filósofo Bernard Henri-Levy disse que DSK era certamente um "sedutor", "amigo das mulheres", mas disse que era "absurdo" dizer que ele era "este personagem brutal e violento, este animal selvagem".

O fato é : todo mundo sabe em Paris que DSK não pode ver uma mulher atraente na sua frente. O jornalista Pierre Haski, cofundador do respeitado site político Rue89, admitiu que a imprensa francesa "se retém sobre certas questões".

Ele fez sua mea culpa no site admitindo que sabia da filha de Mitterrand, e nada escreveu. Assim como sabia, como a maior parte dos jornalistas franceses, que o então chanceler de Mitterrand, Roland Dumas, era amante de Nahed Oijeh, filha do ministro da Defesa da Síria, num governo hostil à França. Ele acha que a imprensa francesa não deve "cair numa inquisição da cama". Mas admite que errou:

- Deveria ter escrito? Não sei, mas, engavetando esta informação no domínio da vida privada, eu sem dúvida errei.