Título: Um olhar sobre a Argentina
Autor: Giambagi, Fabio
Fonte: O Globo, 19/05/2011, Opinião, p. 6

AArgentina realizará eleições presidenciais este ano. Se aqui alguns críticos questionam até que ponto estamos aproveitando a bonança propiciada por uma conjuntura internacional excepcional para lançar as bases para um crescimento duradouro a taxas elevadas, o que dizer dos nossos vizinhos?

No Brasil, pode-se questionar alguns elementos da realidade e apontar para a baixa poupança ou para nossa educação deficiente como elementos preocupantes a longo prazo, mas não há dúvidas de que o país tem percorrido uma trilha parecida com a de países apontados como exemplos a serem seguidos: a inflação nos últimos anos tem sido, em linhas gerais, bem comportada ¿ embora menos nos últimos tempos ¿, o empresariado realiza os seus negócios normalmente, etc.

Já a Argentina, em matéria de economia, está se convertendo em um Estado policial. Um think tank começa a organizar um seminário sobre a crise de energia, anos atrás? A entidade que patrocina o evento recebe uma ligação de uma autoridade, que declara que ¿o presidente não gostaria que o evento seja realizado¿, após o que, mesmo já tendo sido vendidas dezenas de ingressos, ele é cancelado. O board de uma empresa originalmente privada se nega a colaborar com o governo? Conforme relato publicado em vários jornais, uma autoridade se apresenta no local e começa a reunião dizendo que ¿tenho aqui embaixo a minha turma, que é especialista em furar olhos e quebrar a espinha¿. As inconsistências macroeconômicas geram aumentos da inflação? Adota-se o controle de preços. Este aos poucos deixa de ser respeitado? Decide-se intervir no Indec ¿ o IBGE argentino ¿ e os números do IPC começam a ser mais dóceis. A equipe técnica se recusa a participar dessa encenação? Implementa-se uma caça às bruxas dentro da instituição, que se encerra com a fuga dos melhores quadros. Alguns destes escrevem um livro, que é lançado na tradicional Feira do Livro, equivalente à nossa Bienal? No dia do lançamento, o stand de vendas é invadido por capangas distribuindo bordoadas para aqueles que se aventuraram a tentar solicitar o autógrafo dos autores. Diante do descrédito do Indec, os olhos se voltam para instituições independentes ¿ como nossa FGV ¿ que calculam índices de preços? Implementa-se uma perseguição implacável às empresas que contratam tais índices. Os jornais refletem esse estado de coisas e expõem os fatos na mídia impressa? O sindicato ¿ que apoia o governo ¿ faz um piquete e não deixa os principais jornais circularem, abortando o processo de distribuição física. Joaquín Morales Solá, prestigioso jornalista portenho, disse certa vez que ¿para a China, toda crise é uma oportunidade. Para a Argentina, toda oportunidade é uma crise¿. A Argentina ingressou no túnel do tempo ¿ para trás. Está chegando a 1940. Há quem sustente que o fascismo está entrando pela porta dos fundos na política argentina.

O problema do autoritarismo é que ele tende a gerar outras formas de manifestação igualmente autoritárias. Como disse Juan Carr, fundador da Rede Solidária no país vizinho, ¿há tantos conflitos na Argentina que, quando uma pessoa vai dar uma palestra sobre botânica, sempre tem alguém que pergunta de que lado ela está¿. Além disso, há aberrações que, de tão corriqueiras, vão moldando uma nova cultura. Da mesma forma que o parâmetro de normalidade comportamental de uma criança criada em uma família desestruturada, onde a mãe é bêbada e o pai bate nela todo dia, é diferente do de uma criança da mesma idade criada numa família com os padrões de educação típicos de pais afetivos, quem convive com atitudes discricionárias o tempo todo acaba por aceitar como naturais atos que em outros países seriam considerados grotescos. É assim que boa parte do tecido político do país acolheu normalmente o uso das reservas do Banco Central por parte do Tesouro ou a apropriação pelo governo das poupanças privadas dos fundos de pensão. O absurdo cria precedentes no Rio da Prata.

Por isso, qualquer que seja o resultado eleitoral, a Argentina demorará muito tempo para se recuperar de anos e anos de um intervencionismo econômico extremo. Um país onde não dá para confiar sequer no cálculo da inflação terá enormes dificuldades para ser levado a sério pela comunidade internacional.

FABIO GIAMBIAGI é economista.

Carlos Alberto Sardenberg volta a escrever na próxima semana.