Título: No Mercosul de saias, mais frieza e pragmatismo nas relações bilaterais
Autor: Figueiredo
Fonte: O Globo, 22/05/2011, Economia, p. 39

Crise comercial marca nova era entre os dois principais sócios do bloco

Janaína e Eliane Oliveira

BUENOS AIRES E BRASÍLIA. Depois de anos de sintonia e amizade declarada entre os ex-presidentes Néstor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva, Brasil e Argentina, hoje governados por Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, vivem uma nova era em seu relacionamento bilateral. Duas mulheres chegaram à Presidência e, num contexto internacional e interno diferente do vivenciado por seus antecessores, estão construindo um vínculo mais frio e pragmático, segundo especialistas e fontes governamentais.

Nos últimos dias, os governos de Dilma e Cristina protagonizaram um delicado conflito comercial, desencadeado pela decisão do Brasil de aplicar licenças não automáticas ao setor automotivo. A medida, segundo a ministra da Indústria argentina, Débora Giorgi, afetou 50% do comércio entre os dois principais sócios do Mercosul. Por mais que Brasília insista em afirmar que a decisão foi consequência das barreiras que produtos como calçados, pneus e industrializados em geral enfrentam para entrar na Argentina, a iniciativa foi considerada quase uma traição pela Casa Rosada. Isso porque a presidente, embora não tenha confirmado a candidatura à reeleição, em 23 de outubro, indica que está em campanha pelo terceiro mandato Kirchner.

Na expectativa de um entendimento com o Brasil, em um encontro que ocorrerá amanhã e depois em Buenos Aires, a Argentina não esperava uma ofensiva de seu principal sócio na região. Nos corredores do Ministério da Indústria, membros da equipe de Débora lembraram, com irritação, a "ajuda" dada ao vizinho na campanha de Dilma.

- No ano passado, o então presidente Lula nos pediu colaboração e nos comportamos direitinho. Agora somos nós que precisamos de ajuda - disse um membro do governo argentino.

O fato é que a relação entre Dilma e Cristina é mais distante da que tinham Lula e Kirchner (2003-2007). A brasileira, segundo pessoas próximas, sabe que, em ano eleitoral, crescem pressões por medidas protecionistas, especialmente contra o Brasil. Dilma tem evitado falar com Cristina e avalia que o Brasil deve ter grandeza e paciência com os argentinos, "mas não à nossa custa", segundo uma fonte.

Dinâmicas domésticas preocupam, diz professor

A realidade e a situação econômica de ambos os países mudaram. Nos primeiros anos Kirchner, a Argentina vivia uma das crises econômicas mais graves de sua história. Hoje, o país cresce 8%. O porta-voz do Itamaraty, ministro Tovar Nunes, afirma que os dois se encontram em nova fase.

- O que dará votos na eleição é a integração entre Brasil e Argentina e não a criação de barreiras ao comércio - disse.

Para Juan Gabriel Tokatlián, professor de Relações Internacionais da Universidade Di Tella, "Dilma e Cristina estão cada vez mais preocupadas com suas respectivas dinâmicas domésticas".

- Ambas podem ter a cabeça fria para administrar as diferenças, mas devem lidar com temperaturas mais quentes em suas frentes internas - afirmou.

Em Buenos Aires, a sensação é de que o vínculo bilateral enfrenta seu maior teste e que a paciência do Brasil se esgotou.

- Os brasileiros estão de saco cheio. A presidente brasileira é menos tolerante, mas, a economia é menos tolerante - disse o ex-secretário da Indústria argentino Dante Sica, diretor da consultoria Abeceb.com.