Título: O risco de superaquecimento existe, e o Brasil precisa estar preparado
Autor: Eichenberg, Fernando
Fonte: O Globo, 22/05/2011, Economia, p. 36

Às vésperas de uma viagem ao país, economista-chefe do FMI faz alerta

BLANCHARD: "É preciso ser bastante prudente, porque se está mesmo muito próximo do superaquecimento"

WASHINGTON. De sua sala no décimo andar da sede do Fundo Monetário Internacional (FMI), o francês Olivier Blanchard mantém uma constante e estudiosa vigília sobre os movimentos econômicos e financeiros do planeta. Economista-chefe do Fundo, Blanchard, de 62 anos, desembarcará no Rio esta semana para participar do seminário sobre fluxos de capitais em países emergentes, uma promoção conjunta do FMI com o Ministério da Fazenda, na quinta e na sexta-feira. Como um dos expoentes do grupo dos emergentes, o Brasil está no centro de suas atenções. Blanchard considera que o país está ameaçado por um superaquecimento da economia, com nível de fluxos de capitais bastante elevados. Seu principal alerta vai para o risco repentino de alteração de tendência econômica, que poderá causar estragos maiores se o Brasil não estiver atento e preparado. Abatido por um sentimento de "grande tristeza" com a precipitada saída do diretor-gerente Dominique Strauss-Kahn - acusado de abuso sexual -, que o convidou para o atual cargo em 2008, ele preserva sua confiança no futuro da instituição.

Qual a sua avaliação da ameaça do nível de fluxos de capitais no Brasil?

OLIVIER BLANCHARD: No Brasil, claramente um destino preferido dos investidores, há um nível de fluxo de capitais bastante elevado. Há razões para reduzir e, talvez, modificar a composição desses fluxos de capitais no caso do Brasil.

As medidas adotadas pelo Brasil, como as sucessivas elevações do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para conter a entrada de capital especulativo, estão no bom caminho?

BLANCHARD: No caso do Brasil, os fluxos de capitais são muito elevados do ponto de vista macroeconômico. Vocês têm uma economia de forte aquecimento, talvez mesmo de superaquecimento, e nesse contexto os capitais afluem. A política monetária implica um aumento da taxa de juros, o que, ao mesmo tempo, atrai os capitais. O real já tem estado forte. Nesse caso, é preciso utilizar outros instrumentos, como as reservas e os controles de capital, para diminuir os fluxos de uma maneira geral. A resposta ao problema dos fluxos, da maneira como foi introduzida no Brasil, é a boa resposta no momento.

No FMI, mas também fora dele, surgem alertas para a ameaça de superaquecimento da economia brasileira. Qual o risco real de uma bolha para o país?

BLANCHARD: Penso que há um perigo de superaquecimento. Ainda não se está lá, mas exatamente na margem, num ponto em que não se sabe exatamente de qual lado. A questão é saber se as políticas monetária e orçamentária são suficientemente utilizadas. É algo que se pode discutir. Minha resposta seria a de que a elevação da taxa de juros e a consolidação orçamentária são desejáveis. Mas é preciso ser bastante prudente, porque se está mesmo muito próximo do superaquecimento. Os índices de crescimento antecipados indicam que o Brasil está acima do potencial de produção, com uma ameaça inflacionária. É possível que, nos próximos meses, o país siga um caminho de taxas de juros mais elevadas, de uma consolidação orçamentária mais forte. No momento, as medidas adotadas são as corretas. Mas é preciso muita atenção, não se está muito longe (de uma bolha).

O crescimento brasileiro depende, em grande parte, da exportação de commodities, e fala-se inclusive em processo de desindustrialização do país...

BLANCHARD: É a chamada doença holandesa.

Os preços das commodities não permanecerão para sempre nesse nível elevado? Chegará um momento em que os Estados Unidos, por exemplo, aumentarão sua taxa de juros, atraindo capitais alocados em outros países, entre eles o Brasil? A economia brasileira está preparada para esse quadro?

BLANCHARD: O problema do Brasil não é tanto o de superaquecimento, mas, sim, o risco de um alteração repentina de tendência. Por exemplo, pode ocorrer uma redução de curto prazo do preço das matérias-primas. Os fluxos de capitais podem se inverter por diferentes razões. Nesse caso, o Brasil estaria preparado para fazer os ajustes necessários? É um choque negativo, pode levar a um grande déficit da balança comercial. É preciso refletir sobre isso. Mas estamos no domínio do risco. O risco de superaquecimento existe, e o Brasil precisa estar preparado.

Como se preparar para essa eventual mudança de tendência?

BLANCHARD: Num choque desse tipo, não se consegue evitar completamente as consequências. Se há margem, pode-se baixar a taxa de juros para manter a demanda. Mas há um problema de realocação do setor exportador para a demanda interior, e isso pode ser bastante difícil de ser feito - aliás, por qualquer país, não somente para o Brasil. Pode-se fazer uma pequena macroeconomia, mas há esse reajuste estrutural, que é complicado.

O Brasil vive, hoje, um período de pressão inflacionária. O senhor defende que, em certos casos, pode-se deixar aumentar a inflação sem que sejam causados danos maiores?

BLANCHARD: Depende das origens da inflação. O aumento dos preços de importações - como o caso do petróleo -, tem um efeito direto sobre a inflação. Pode-se aceitar esse efeito direto, o importante é que não seja durável. A inflação causada pelo superaquecimento é mais incômoda. No caso do Brasil, o importante é separar bem as duas. E tenho a impressão, segundo estudos de quem acompanha isso mais de perto aqui, de que agora começa a aparecer um componente que vem do fato de que a economia está no limite do superaquecimento. Depois que se nota isso, é preciso frear a máquina, não há a mínima dúvida.

A valorização do real é outra preocupação brasileira. O senhor recomenda que não se deve resistir, mas aceitar uma apreciação da moeda?

BLANCHARD: É preciso aceitar uma certa apreciação. Mas digo também que, em certos casos, o fluxo de capitais pode ser tão forte que, se nada for feito, a valorização pode se tornar excessiva e provocar distorções na economia. Nesse caso, é razoável limitar a apreciação da taxa de câmbio. Está claro que o Brasil aceitou uma valorização da moeda mais importante que na grande maioria dos países emergentes. Penso que é razoável que se adotem medidas que limitem a valorização do real, como a acumulação de reservas ou controle de capitais.

Qual seu sentimento pessoal em relação à saída da direção do FMI de Dominique Strauss-Kahn, com quem o senhor trabalhou por três anos?

BLANCHARD: Uma tristeza muito grande. Certamente, uma tristeza muito grande. Em três anos, ele fez um excelente trabalho.

As mudanças que Strauss-Kahn promoveu no FMI vieram para ficar?

BLANCHARD: Não tenho intenção de dar meia-volta. E ninguém tem a intenção de fazê-lo. São conquistas adquiridas, e é preciso continuar a construir em cima delas. Não há razão alguma para se pensar que vamos voltar atrás nessas conquistas.