Título: Assentamento do Incra tem reserva fictícia
Autor: Maltchik, Roberto
Fonte: O Globo, 29/05/2011, O País, p. 9

IMPASSE NO CAMPO

Ibama também faz vista grossa, e área em Goiás tem até corretor de imóveis, que construiu sua casa no local ARAGUAPAZ (GO). Sob o olhar omisso do Incra e do Ibama, a área destinada à proteção ambiental em um assentamento da reforma agrária em Goiás transformou-se numa fábrica para comercialização de lotes, com direito até mesmo à presença de um corretor de imóveis que construiu no local sua casa de campo. A reserva fictícia do assentamento Santa Anna, a 60 quilômetros das margens do Rio Araguaia, é na verdade uma área com 26 "parcelas" de pasto bom e rentável, que provoca disputas políticas, denúncias de uso de laranjas para ocupação de terras da União e até ameaças de morte, na luta pela terra entre assentados e invasores.

O abandono estatal faz perdurar há 11 anos um jogo de faz de conta: o Incra finge que faz a reforma agrária, e o Ibama finge que lá existe uma reserva legal, como prevê a lei. Porém, como não há reserva legal preservada, as 103 famílias assentadas pelo Incra ficam sem crédito para produzir. Na última quinta, o Ibama fez operação para autuar os posseiros, na maioria miseráveis do campo, em até R$400 mil. Agora, a Superintendência do Incra se nega a executar uma decisão da Justiça Federal para despejar famílias invasoras.

- Já estava esperando por isso. Um dia iria acontecer. Se me tirarem daqui, é como me matar. Não tenho mais nada - afirma Jacó da Silva, proeminente invasor que construiu na reserva uma bem cuidada casa de quatro quartos e até com uma piscina natural no seu quintal.

No assentamento, se sobressai a casa de campo do corretor de imóveis rurais Rubens Santos Fernandes. Ele é dono de outras duas casas, uma delas com piscina e galpão na vizinha cidade de Aruanã. "Rubão" usa como laranja o sogro, Laureano Bonfim de Souza, para se apossar de três lotes que somam 80 hectares. Ele já construiu duas casas, um curral e hoje contabiliza 177 cabeças de gado e 60 cabritos. É o patrão do sítio Nossa Senhora Aparecida, sua "propriedade" na terra pública de preservação ambiental.

Rubão diz que comprou a terra para o sogro. Mas admite que não abre mão do repouso nos finais de semana na sede da invasão.

- Eu gosto demais de lá, né. Eu gosto demais de ir para lá no final de semana, eu e a minha família - disse o corretor de imóveis, antes de ser autuado em R$440 mil por impedir a regeneração natural do solo.

Também posseiro na reserva legal do assentamento, Diodéto de Paula Souza é um senhor de hábitos e feições simples, que ajudam a esconder sua bagagem fora da reserva. De acordo com o Incra, o aposentado de 78 anos detém, em nome de terceiros, duas propriedades privadas, uma de 219 hectares, em Mato Grosso, e outra de 316 hectares, no estado de Goiás.

- Não tenho nada disso não - diz, rindo. - Estamos aqui esperando para ver se a gente ganha a posse dessa área.

Lotes na reserva custam até R$10 mil

A reserva de 905 hectares já tem 86% de sua área transformada em pasto. Todo mundo sabe que os lotes custam até R$10 mil, quando não são trocados por carros, motos ou gado. O aluguel de pasto é a atividade mais lucrativa: R$12, por cabeça. Com medo, revelam que o invasor mais antigo, Lauri Ramos de Oliveira, cobrava uma "caixinha" por negócio fechado na reserva legal.

- Ele intermediava todos os negócios aqui. O pessoal começou a reclamar muito, daí ele parou - conta um dos posseiros.

Lauri alega que é "um coitado, um matuto". Um grupo de assentados, sem crédito, que pede a retirada dos posseiros, diz que Lauri constantemente os ameaça de morte.

Em maio de 2006, o Ibama esteve no local para dizer que era "praticamente impossível manter aquela área como reserva legal". Em fevereiro deste ano, a Justiça Federal determinou uma ação de reintegração de posse da área ocupada, ordem descumprida pela Superintendência do Incra em Goiás. O superintendente Rogério Arantes, envolvido em uma disputa de poder que põe em lados opostos Incra e Ibama, argumentou que havia iminência de conflito e, por isso, a ordem não foi cumprida. Ele defende que as famílias com perfil para a reforma agrária permaneçam no local e que a reserva legal seja transferida para outra área. Sobre os posseiros "graúdos", admite a aberração:

- Para mim é criminoso. Não tenha dúvida, isso é um crime total - afirma Arantes.

O diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano Evaristo, disse que não pode responder por que as gestões anteriores deixaram de fiscalizar o crime ambiental, há tempos conhecido. E afirma que determinou a ação para não incorrer em prevaricação.

- Nunca vi esse laudo de 2006. Não sabia disso. O ilícito ambiental não podia ficar sem resposta, senão iríamos prevaricar - argumentou o diretor do Ibama.