Título: Liturgia das instituições
Autor:
Fonte: Correio Braziliense, 08/08/2009, Opinião, p. 24

Fala-se muito em liturgia do cargo. Trata-se de comportamento cerimonioso que certos postos impõem aos ocupantes. Não é por acaso que o vocábulo liturgia tem raízes nas cerimônias religiosas. No universo eclesiástico, exige-se a obediência a ritual estabelecido para o complexo das celebrações. Em razão do código de conduta rígido, não se admite, por exemplo, que um padre ofereça a eucaristia sem a solenidade que o momento requer. Ou que o professor faça gestos obscenos aos alunos em sala de aula. Ou que o presidente da República apareça em público vestindo roupas íntimas.

A sociedade não abre mão do cumprimento dos pactos protocolares. Daí a indignação provocada pelo bate-boca de quinta-feira no plenário do Senado Federal. De um lado, o peessedebista Tasso Jereissati (CE). De outro, o líder do PMDB, Renan Calheiros (AL). A altercação se caracterizou pela sucessão de acusações, vozes alteradas e vocabulário de baixo calão. Não faltaram gestos agressivos nem palavrões. ¿Não aponte esse dedo sujo para cima de mim¿, gritou o representante cearense. ¿Coronel cangaceiro¿, respondeu o outro aos berros.

A tensão chegou ao ápice e a palavras indizíveis no contexto. Foi necessário desligar os microfones. Transmitido ao vivo pelas tevês, pelas rádios e pela internet, repetido várias vezes ao longo do dia do pega e dos dias seguintes, não constitui exagero afirmar que a maior parte dos brasileiros tomou conhecimento da confrontação verbal que, por pouco, não chegou à agressão física. A cena de botequim de quinta categoria não atinge apenas os protagonistas. Fere de morte o Senado, já cambaleante sob o peso das denúncias que se sucedem há quatro meses.

A matéria-prima do Congresso é a língua. Daí chamar-se a instituição de parlamento. Apresentam-se projetos, defendem-se teses, argumenta-se pró ou contra com o uso de palavras. O léxico português ultrapassa os 400 mil vocábulos. É suficientemente rico para exprimir ideias e emoções. E indiscutivelmente capaz de traduzir as diferentes nuanças do falante. Ignorar a capacidade de expressão do idioma não condiz com a função de deputados e senadores. Um e outro poderiam ter transmitido a mensagem que se dispunham transmitir com substantivos, adjetivos e verbos respeitosos, conforme imposto pela liturgia do cargo.

Tasso Jereissati e Renan Calheiros devem desculpas à nação. O povo os elegeu para representá-lo na busca de soluções para os graves problemas nacionais. Desmoralizar a instituição não estava na plataforma dos candidatos que ora se digladiam. A proposta apresentada ao eleitor foi outra, com certeza plena de realizações em prol do bem-estar dos 180 milhões de brasileiros. Desrespeitar a liturgia do cargo é contribuir para tornar capenga a democracia pela qual tanto lutamos. O Congresso, vale lembrar, é um dos tripés que alicerçam o regime de franquias democráticas.