Título: Os empresários da ilusão dos doentes
Autor: Rizzo, Alana; Herdy, Thiago
Fonte: Correio Braziliense, 09/08/2009, Brasil, p. 11

Integrantes do esquema de fabricação e venda de próteses ortopédicas atuam impunes há 10 anos o país

Alana Rizzo Enviada especial

Porto Alegre (RS) ¿ O rastro de dor deixado pelas próteses de mentira não tem fim. Nem mesmo os processos movidos pelas vítimas e as denúncias do Ministério Público Estadual (MPE-RS) foram capazes de parar um negócio, que começou há quase 10 anos. O empresário Alberto Fernandes Silva e os três filhos ¿ Diego, Douglas e Deives ¿ continuam fabricando e vendendo próteses ortopédicas. Em 2006, eles foram acusados junto com o médico Ernani Abreu Vianna de cometer crimes contra a saúde pública, fabricando e vendendo produtos sem registro. No mesmo período, três novas empresas ligadas à família, a Bioteck, a RDC e a Brasilmed começaram a funcionar. E já estão sob investigação. Todas funcionam em um mesmo terreno em Porto Alegre. A última foi vendida para dois empresários de Brasília.

As novas empresas, dessa vez, não contam, pelo menos oficialmente, com a participação do médico Ernani. No portão, apenas a placa da Bioteck. A RDC foi fundada em novembro de 2006, logo após as denúncias, mas não tem autorização de funcionamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.

A Brasilmed, agora Fusão Sul Soluções para Medicina, foi fundada em 2005. A autorização prevê armazenamento, distribuição, importação e transporte de produtos médicos. Agora está nas mãos dos empresários Carlos Augusto Montandon Borges e Vittorio Alberto Beltran Gomes. Os irmãos são donos ainda da VC Medical Material Hospitalar, na Asa Norte, em Brasília, que comprava material das antigas empresas da família. A VC Medical também não tem registro de autorização. Os dois irmãos têm outras cinco empresas em São Paulo, Rio, Goiânia e na capital federal.

Além dessas empresas, Alberto estaria por trás da GI Metalúrgica e Usinagem Ltda. A empresa está em nome de laranjas e produz instrumentos para a Bioteck.

É para burlar as regras da Anvisa e dos setores de compras dos hospitais que Alberto trabalha com mais de uma empresa. Foi a forma encontrada para oferecer concorrência na hora da escolha do produto para médicos, hospitais e até mesmo o poder público, que pagou algumas das cirurgias com verba do Sistema Único de Saúde.

Antigas empresas como a Equimed (EBS), Techymed e Titanium foram abandonadas depois das denúncias de crime contra a saúde. Os empresários acabaram, em 2006, acusados de fabricar e vender próteses sem controle de qualidade. O titânio medicinal era mesclado ao industrial. Restos de sucata e metais compunham o produto, que foi vendido para hospitais. O grupo também clonava produtos originais e conseguia atingir uma margem de lucro alta, chegando a mais de 1000%. Mas o resultado era o aumento das dores nos pacientes, o que levava a uma nova cirurgia, e a metalose, que é a reação causada no organismo pelas partículas de titânio liberadas pela prótese. O processo inflamatório pode provocar o desprendimento do implante do osso. A estimativa é que, só no Rio Grande do Sul, 7 mil pessoas foram lesadas. O número deve ser ainda maior, já que as empresas eram líderes de mercado e vendiam para o Brasil todo.

Parafusos quebrados na coluna

Denise Borges de Medeiros, 46 anos, Porto Alegre (RS)

¿Namastê.¿ Com as palmas das mãos coladas e os dedos apontando para o alto, na altura do peito, o cumprimento é uma saudação a Deus, segundo a cultura indiana. Os cabelos longos e encaracolados escondem um pouco o rosto e as olheiras de quem dormiu mal. Podia ser efeito dos remédios, da tensão, ou um pouco dos dois. Pela primeira vez, estava disposta a falar publicamente sobre o assunto. ¿Nem todo mundo sabe.¿

Os hábitos zens ajudam a lidar com o mal que se esconde dentro do corpo. Uma cirurgia na coluna para corrigir um problema nas vértebras transformou-se em pesadelo no dia em que começou a sentir fortes dores de cabeça. Os médicos lhe informaram: os parafusos colocados anteriormente estavam quebrados e tortos. Havia indícios de que tinham sido produzidos a partir de restos de material industrial. O custo de cada um, R$ 16 mil, não batia com a notícia. Entrou com um processo na Justiça estadual.

Passaram-se quatro anos e Denise ainda aguarda a nomeação de um perito. ¿Procurei o melhor médico, o melhor hospital. Nunca imaginei que isso poderia acontecer.¿ As mudanças na rotina resultaram em isolamento. Dirigir virou sofrimento. Agora, o ato de assumir o volante é precedido por períodos de descanso na horizontal, para poupar a coluna.

¿Não consigo acompanhar o ritmo de uma pessoa normal. Não posso dançar, colocar um salto alto, ficar sentada muito tempo.¿ Os remédios a fazem adormecer antes da madrugada, por isso acorda cedo no dia seguinte. Mas não tem muito o que fazer. Escolheu o computador como principal arma de comunicação com o mundo e, na frente da tela, passa horas mergulhada no mundo médico. Está sempre atrás de soluções para viver em paz.

Em uma das pesquisas, conheceu um cirurgião alemão que se disse disposto a operá-la. ¿Ninguém no Brasil quer fazer. Sei que há um risco. Mas também tem outro, ainda maior, se eu ficar com os parafusos.¿ O custo da intervenção é alto: R$ 150 mil. A expectativa é conseguir na Justiça o valor. A aposentadoria do INSS de pouco mais de R$ 1 mil é insuficiente até mesmo para manter o filho mais novo, de 13 anos.

Nesse isolamento, precisou encontrar outro tipo de força. Não aquela que já a tinha feito escalar picos, desvendar geleiras, pilotar barcos e aviões. ¿Tudo tem solução. Eu sigo em busca da minha¿, diz ela, que encontrou refúgio em uma pequena casa, na serra gaúcha, para meditar e rezar. Com ela, duas gatas e um pit bull. ¿O valor do tempo mudou, não posso mais ter pressa. Vejo a vida passar com paciência e cada dia se torna mais valioso.¿

A casa antiga, de Porto Alegre, está à venda. Guarda histórias e lembranças de outra vida, materializadas em quadros trazidos da Espanha, pratos da Austrália e da Nova Zelândia e uma imagem de Tumo, o Deus da Medicina, que veio na bagagem de uma viagem ao Peru. ¿Ainda quero voltar a Machu Pichu e fazer a trilha inca¿, diz. Sobre a mesa e nas paredes, os budas de cerâmica, feitos por ela mesma, são imagens da viagem que ainda não fez. Ver a Índia e a Cordilheira do Himalaia é um sonho que Denise ainda não sabe se conseguirá realizar. (AR)