Título: Corrupção sem castigo
Autor: Rocha, Carla; Vasconcellos, Fábio
Fonte: O Globo, 05/06/2011, Rio, p. 20

Só 1% dos processos sobre crimes do colarinho branco resulta em condenação na capital

A corrupção no Rio já tem sentença: impunidade. Um levantamento feito pelo GLOBO, a partir de uma amostra com 378 ações de improbidade administrativa da capital, abertas no período de 1994 a 2011, mostra que os processos de crimes do colarinho branco giram sem solução no moinho do Judiciário fluminense. Há raríssimos casos julgados. Do total de processos analisados, foram encontradas pouco mais de 40 sentenças, algumas de absolvição e muitas decisões de primeira instância, o que significa que podem ser modificadas na batalha judicial travada em casos de corrupção que envolvem fraudes complexas e dificuldades de produção de provas. Na amostra, foram achadas somente quatro condenações mantidas em segunda instância, ou 1% do total.

Há casos exemplares que ilustram as dificuldades de se punirem servidores públicos acusados de desvio de dinheiro. Um deles é o propinoduto, um dos maiores escândalos já ocorridos no Rio. Passados oito anos, o processo está longe de um desfecho. Personagem emblemático do caso, o fiscal de renda Rodrigo Silveirinha - acusado de participar de uma quadrilha que desviou US$33 milhões do Fisco fluminense - foi localizado pelo GLOBO levando uma vida anônima. Ele vive no mesmo condomínio de luxo no Recreio dos Bandeirantes e, com todo o seu patrimônio bloqueado, é apontado como zeloso dono de um posto de gasolina da Zona Norte.

A análise dos processos foi feita a partir de pesquisas no site do Tribunal de Justiça e de informações do Ministério Público estadual, de advogados e de réus. Um trabalho difícil porque decisões tomadas por juízes de primeiro grau do Rio podem desencadear uma série quase interminável de recursos. Todas as ações têm origem na Promotoria de Tutela Coletiva e Direitos Difusos do MP, que, até 2008, concentrava a maior parte dos casos de improbidade administrativa. Naquele ano, foram criadas promotorias específicas para saúde e educação.

Lei foi aprovada na época de Collor

O resultado do levantamento põe em xeque a eficácia no Rio da lei 8.429, aprovada em 1992, no calor dos acontecimentos que culminaram com o impeachment do presidente Fernando Collor. Era uma medida política, mas acreditava-se que poderia ser um golpe certeiro na desonestidade de agentes públicos. Os condenados perdem a função, têm que ressarcir o erário do prejuízo e tornam-se inelegíveis. As sanções tanto atingem aqueles que enriqueceram ilicitamente desviando dinheiro público quanto os que causaram prejuízos ao erário, inclusive por omissão. Por isso, tantos políticos temem ser acusados desse tipo de crime.

Na prática, a expectativa se frustrou. Como há poucas condenações, também há poucas execuções para que o dinheiro desviado volte para o caixa do estado. Um espólio milionário. Nos processos aos quais O GLOBO teve acesso, os valores envolvidos atingem um montante de pelo menos R$530 milhões. E pode ser muito mais. A projeção foi feita com base naquelas ações em que o Ministério Público, ao apresentar a denúncia, já faz uma estimativa do suposto desvio ou prejuízo, ou ainda em notícias divulgadas sobre valores envolvidos nas disputas judiciais, sejam compras superfaturadas ou despesas geradas por concursos públicos cancelados em razão de fraudes.

As ações dizem respeito a cerca de 1.600 réus - entre servidores do Executivo, do Legislativo e do Judiciário e representantes de empresas citadas nas denúncias, além de ONGs e outras entidades. Ex-governadores e prefeitos estão bem colocados no ranking da improbidade, mas o grande volume se refere a servidores comuns acusados de irregularidades nas mais diversas áreas, da segurança à educação. Do total de réus, 72% são pessoas físicas; 12%, órgãos do governo; 12%, empresas privadas; e 4%, ONGs e associações.

A morosidade e a escassez de sentenças, para especialistas, desmoralizam o sistema e desgastam denunciados e denunciantes. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Manoel Alberto Rebêlo dos Santos, diz que o processo legal deve ser repensado.

- O processo começa com o juiz de primeiro grau, depois há um recurso para o tribunal, que, por sua vez, pode demorar por uma série de razões. E ainda cabem recursos no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Só isso já é o bastante para justificar a demora - observa. - Outro problema é que o Ministério Público e a polícia têm que estar bem aparelhados. As ações, muitas vezes, envolvem questões muito complexas, e as denúncias não vêm bem embasadas, com provas que permitam ao juiz ter a consciência tranquila para decidir. Nós, juízes, não podemos condenar por simpatia ou antipatia. Temos que ter certeza.

O TJ apresenta números sustentando que a situação não é tão grave. De acordo com o Departamento de Informações Gerenciais do órgão, em 2010, houve 294 sentenças e, este ano, 99. As estatísticas do tribunal consideram, no entanto, processos em todo o estado, e não apenas na capital. Além disso, não estabelece quanto isso representa do total de ações de improbidade que tramitam no TJ.

Sobre o resultado do levantamento, o procurador-geral de Justiça, Cláudio Lopes, diz que há problemas na produção de provas porque as fraudes são cada vez mais sofisticadas. Segundo ele, recentemente, o Ministério Público fez vários investimentos em infraestrutura técnica para atender os promotores, como um laboratório de lavagem de dinheiro e combate a cartéis, que passou a trabalhar em conjunto com o Grupo de Apoio Técnico Especializado (Gate) do órgão:

- Este não é um problema do Rio, mas nacional. As denúncias, muitas vezes, significam uma tonelada de informações, dados de quebra de sigilo bancário e fiscal. Os promotores e juízes são juristas, não são contadores ou auditores fiscais. É um trabalho que exige grande especialização. Com os investimentos feitos, acredito que as estatísticas vão mudar num futuro próximo.

Dos quatro casos em que os réus foram condenados, sem mais chance de recurso no tribunal do Rio, um é muito antigo. E foi um processo arrastado. O TJ levou 16 anos para julgar em definitivo o ex-inspetor Hélcio Andrade. Depois de comprar um carro zero, ele acabou denunciado em 1995. Uma perícia chegou a uma movimentação bancária dele e de sua mulher de cerca de US$5 milhões. Hélcio foi condenado em 2005, dez anos depois. Mais cinco anos para julgar o recurso, que confirmou a sentença no fim do ano passado. Tanta demora permitiu que ele se aposentasse, impossibilitando uma das punições: a perda da função pública. Aos 72 anos, e muito doente, ele não quer falar do passado. Anos e anos de idas e vindas, e o condenado ainda pode tentar reverter a decisão do Rio nos tribunais superiores em Brasília.

Ex-dirigente da Cedae entre condenados

Um ex-presidente da Cedae, Alberto José Mendes Ramos, também figura entre os condenados em segunda instância. A acusação era de uso de recursos públicos em propaganda irregular. Ramos também é o terceiro caso de condenação, porque ele foi considerado culpado numa denúncia de fraude no índice de poluição da água consumida no Rio. A propósito, a companhia de águas do Rio é figurinha fácil na lista de ações de improbidade no Rio. Um outro dirigente da empresa, Aluizio Meyer, foi considerado culpado - mas em primeira instância -, no ano passado, por contratação irregular de funcionários terceirizados. A ação tem outros três réus, também dirigentes da companhia.

- Como a Cedae era considerada uma empresa privatizável, na época eu não podia fazer concurso público. Só poderia manter o funcionamento dos serviços com terceirizados. Mas eu vou recorrer no próprio tribunal - diz Meyer.

A quarta condenação, de 2006, é de Manoelino Azevedo dos Santos, servidor acusado de ter se apropriado do dinheiro de um colega aposentado. Lotado na Superintendência de Despesa de Pessoal da Secretaria de Administração, de abril de 96 a outubro de 97, ele, segundo a sentença, se apropriou de R$21 mil de um servidor inativo. Até mesmo a denúncia, às vezes, demora a chegar à Justiça. Irregularidade dos anos 90, a apropriação indébita de Manoelino só virou processo de fato em 2002.