Título: Servidor resiste a ponto eletrônico
Autor: Pires, Luciano
Fonte: Correio Braziliense, 09/08/2009, Economia, p. 18

Órgãos públicos ignoram norma que, desde 1996, torna obrigatório o acompanhamento instantâneo da assiduidade do funcionalismo. Governo prega modernização da máquina, mas pouco faz

Utilizado em larga escala na iniciativa privada como ferramenta básica de gestão de pessoas, o controle eletrônico de ponto ainda é raridade no setor público. Por limitações técnicas ou negligência administrativa, órgãos centrais, autarquias e fundações simplesmente ignoram os novos tempos e deixam de lado até mesmo a lei que obriga a burocracia federal a adotar modelos mais eficientes de acompanhamento de assiduidade e pontualidade. Apesar do discurso de modernização da máquina e busca pela profissionalização do quadro de servidores, nada indica que o governo resolverá o gargalo.

Em 1996, um decreto baixado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso estabeleceu que a rotina nas repartições deveria ser monitorada. O objetivo era apanhar funcionários fantasmas e enquadrar a ¿turma do cafezinho¿ ¿ gente que atrasa demais ou falta com frequência. ¿O controle eletrônico de ponto deverá ser implantado, de forma gradativa, tendo início nos órgãos e entidades localizados no Distrito Federal e nas capitais, cuja implantação deverá estar concluída no prazo máximo de seis meses¿, reforça o decreto. Passada mais de uma década, pouco foi feito. A norma, idealizada pelo ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira ¿ dentro do polêmico Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado ¿ , é letra morta.

Ao longo dos últimos anos, alguns ministérios até tentaram instalar sistemas de acesso e controle, mas a rejeição foi tão grande que os projetos acabaram na gaveta. Hoje em dia, a esmagadora maioria do funcionalismo marca presença em folhas de papel supervisionadas pelas chefias. Apontada como frágil, a fórmula é criticada por especialistas em recursos humanos porque abre brechas para fraudes. ¿O mapeamento é importante, mas ele por si só não é suficiente. O fato de ser pontual ou assíduo não quer dizer que o trabalhador seja produtivo. Nas empresas privadas, outros indicadores têm sido observados para complementar este¿, explica Lílian Graziano, professora de gestão de pessoas da Trevisan Escola de Negócios.

Estranheza Em alguns segmentos da administração pública há quem tenha encontrado o meio-termo. Há dois meses, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) flexibilizou a jornada de trabalho. Deu aos funcionários a opção de cumprir sete horas diárias corridas, com sobreaviso, e aboliu o controle de ponto por papel. Tudo agora é feito no computador: o servidor chega para trabalhar, acessa a intranet, digita uma senha e pronto. Ao sair, o procedimento é repetido. ¿Vamos evoluir do computador para outra forma de verificação. Ainda não sabemos qual, mas não será a catraca¿, diz Rodrigo Augusto Barbosa, superintendente de administração geral.

Importada do Ministério Público da União, a experiência na Anatel enfrentou resistências no início. Parte dos empregados não gostou, mas atualmente, de acordo com Barbosa, a aceitação é total. ¿As pessoas estão gostando, apesar de termos ampliado a carga líquida de trabalho¿, completa. Outras agências reguladoras já se preparam para copiar o sistema. Nos bastidores, a Secretaria de Recursos Humanos (SRH) ¿ órgão ligado ao Ministério do Planejamento ¿ questiona a autonomia desses órgãos em ¿legislar¿ sobre a questão e pressiona para que os gestores recuem.

Josemilton Costa, secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), reconhece que iniciativas que mexem com o dia a dia dos servidores, de início, causam ¿estranheza¿ entre as categorias, mas justifica que, com o tempo, a tendência é de que todos acabem se adaptando. ¿Não vejo problema com o ponto eletrônico porque, afinal de contas, todo trabalhador do setor privado também está sujeito a isso¿, reforça.

Ousadia A proposta mais ousada de controle de frequência em toda a União está em curso na Polícia Federal. Sem traumas, o ponto eletrônico baseado na leitura de digital registra entrada e saída de cada servidor na sede do departamento ¿ a regra vale inclusive para os delegados. Em funcionamento há menos de um mês, o sistema se transformou em uma importante fonte de informações. Horários, justificativas de ausências, de atrasos, viagens, atestados médicos e uma série de outros itens são armazenados.

Os dados captados nos leitores do prédio da PF no Setor de Autarquias Sul são enviados para uma central, que detalha a rotina do funcionário em tabelas simples. Os dados ficam disponíveis aos servidores. Em caso de erro, cada pessoa tem autonomia para fazer retificações. Tudo é supervisionado pelos superiores. Para os gestores de recursos humanos da Polícia Federal, o ponto eletrônico possibilita planejar ações de longo prazo, remanejar pessoas e até mesmo adequar rotinas.

A era Bresser Idealizado em 1995, o plano de reforma do Estado pretendia criar uma burocracia eficiente, baseada em resultados e metas. A política central previa o enxugamento da máquina, com poucos concursos públicos, planos de demissões voluntárias e a divisão de tarefas com a iniciativa privada por meio de terceirizações. Bresser privilegiou os servidores de elite, aumentando salários e reforçando o papel das carreiras transversais. Embora seja um crítico do modelo adotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e das ações voltadas à recomposição da burocracia, Bresser não se considera neoliberal.

Protestos e ameaça de greve

De norte a sul do país, a troca do sistema manual de frequência pelo ponto eletrônico é lenta e alvo de ataques por parte do funcionalismo. Assim como na União, entre os estados a modernização dos processos de controle de pessoal enfrenta dilemas operacionais e ideológicos.

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os servidores fizeram campanha no ano passado contra o monitoramento digital. Em defesa das folhas de papel preenchidas a mão no começo e no fim do expediente, promoveram protestos públicos, abaixo-assinados e fizeram até ameaça de greve. O argumento principal foi o de que a educação ¿ especialmente a pública ¿ não tem fronteiras, logo não poderia se limitar a quatro paredes ou se sujeitar às pressões do relógio. Os estudantes, por meio do Diretório Central, apoiaram a causa e repudiaram a implantação do verificador eletrônico.

Há experiências em andamento ou já consolidadas em estados como Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia e Espírito Santo. Em nível municipal, o mecanismo informatizado de medir a assiduidade e a pontualidades dos servidores praticamente não existe. Poucas prefeituras no Brasil renovaram seus sistemas. Apenas nas capitais a ideia de digitalizar o controle encontra terreno fértil para prosperar. (LP)