Título: Parlamento informal
Autor: Pariz, Tiago
Fonte: Correio Braziliense, 10/08/2009, Política, p. 2

Alheio à crise da Casa, um exército de profissionais transforma corredores e arredores do Senado e da Câmara num misto de feira livre, shopping center e território do jogo do bicho

Fábio Júlio e Ismael Pereira são especialistas na arte de dar brilho aos sapatos de parlamentares e servidores e sonham com um cargo no Congresso Marisa Rosário cuida de um salão de beleza há 18 anos, mas sente os efeitos da crise. ¿Houve tempo em que os senadores faziam fila¿, diz

O Congresso do bate-boca, dos atos secretos, das suspeitas de mau uso de recursos públicos e do convite ao nepotismo ganhou ênfase nos últimos meses e promete capítulos polêmicos nos próximos dias, seja no Conselho de Ética, na CPI da Petrobras ou no plenário (veja reportagem na página ao lado). Mas esse mesmo Congresso abriga uma espécie de dimensão paralela, com jeito de pequena metrópole, em que há intensa movimentação comercial, num misto de feira livre, camelódromo e shopping center. Dá para comprar livros, bolsas, perfumes, maquiagem e artesanato. Se a demanda é estética, engraxates e cabeleireiros estão a postos. E, numa projeção do ambiente de transgressões que marca o estereótipo do parlamento, é possível fazer uma fezinha no jogo do bicho.

Câmara e Senado recebem milhares de visitantes por dia, que se misturam aos quase 25 mil funcionários. As duas casas oferecem serviços comerciais autorizados pelas diretorias. Tanta gente acumulada, no entanto, elevou a demanda e alimentou o surgimento de dezenas de profissionais que atuam na informalidade. Eles concorrem entre si e com os estabelecimentos autorizados.

A disputa vale até para o jogo do bicho, considerado contravenção penal. Duas banquinhas atendem os servidores nas proximidades da Câmara. Uma está a menos de 300m da entrada do Congresso. A segunda é mais longe. Atende prioritariamente funcionários dos ministérios. O jogo é feito por duas pessoas que não quiseram se identificar. São conhecidas por apelidos: Siri e Gordo.

¿Adoro fazer um joguinho¿, conta dona Zita, copeira na Câmara. Os bicheiros preferem os arredores da Casa porque internamente a segurança é mais rígida. Na volta da aposta, Zita passa na banquinha da Joana. É cliente habitual de perfumes e batons. Joana oferece também bolsas, com preços entre R$ 40 e R$ 250. Um batom brilhante sai por R$ 16.

Dentro do Congresso tem lugar para tudo. Doces, lanches, salada de frutas oferecida de gabinete em gabinete e no comitê de imprensa. Uma das vendedoras conta que acumula R$ 500 por mês só no Congresso. A Câmara considera a atividade ilegal. A Polícia Legislativa é orientada a coibir o comércio informal. Afinal, argumentam, há lanchonetes que participaram de licitação prontas para atender a clientela. A recomendação, contudo, não é seguida. Todos passeiam livremente pelos corredores.

Benefício extinto E não é só da informalidade que vivem as duas Casas. A Câmara licita um espaço para ser explorado por um salão de beleza. O Senado tem um espaço físico onde os funcionários trabalham diariamente há mais de 30 anos. É o caso de Procide Pereira de Vasconcelos, 46 anos. Ele é engraxate desde os anos 1970 na Casa. Até o fim dos anos 1980, tinha carteira assinada, com direito a férias, 13º salário e bonificações. O benefício foi extinto na década seguinte. Ele viu os pupilos Fábio Júlio, 28, Fábio de Jesus, 33, e Ismael Pereira de Andrade crescerem ao seu lado deixando brilhantes os sapatos dos clientes.

¿A gente era tudo magrinho aqui. Chegamos todos moleques e estamos aqui até hoje¿, diz Júlio. Os três chegaram em 1993. Júlio é casado e tem filho, mas não quer ficar nessa vida para sempre. ¿Eu quero fazer outra coisa, mas é difícil. Ninguém quer arrumar um cargo para a gente¿, lamenta.

Em tempos de nomeação por atos secretos, outras pessoas poderiam ter sido beneficiadas além do namorado da neta do senador José Sarney (PMDB-AP). Uma reclamação dos engraxates é a taxa fixa que têm de pagar por mês:

R$ 23. ¿A gente trabalhou até no recesso. Mas, como não havia público, deixei de vir porque estava pagando para trabalhar¿, diz Procide, o mais velho, que completa a renda vendendo latinhas de refrigerante e suco vazias. ¿Aqui dá para tirar R$ 400, R$ 500. É difícil sustentar uma família assim¿, emenda Fábio Júlio.

A banca dos engraxates fica ao lado do salão de beleza, que oferece corte de cabelo, barba e serviços de manicure. Marisa Rosário, 51 anos, está há 18 no Senado. Diz que os tempos bons não voltam mais. Lembra que tinha demanda toda hora por clientes. ¿Os senadores faziam fila. Hoje não tem mais ninguém¿, queixa-se. ¿Cheguei a tirar R$ 700 por mês. Hoje fico só meio expediente. O restante do dia atendo na casa de clientes e cuido dos meus netos¿, lista.

Limite da legalidade

O jogo do bicho foi lançado no Rio de Janeiro, em 1892, como um passatempo do Jardim Zoológico, cujo proprietário era o barão João Batista Drummond. Em determinado domingo de julho daquele ano, para entreter convidados, foi oferecido um jogo que consistia na escolha de um dos 25 bichos do zoo. Quem acertasse ganhava o prêmio em tostões. A aposta viveu no limite da legalidade até 1941, quando o Decreto-lei nº 3.688 proibiu jogos de azar no Brasil.

O número 25 mil Número estimado de funcionários que trabalham no parlamento