Título: Sem necessidade de passaporte
Autor: Alves, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 11/08/2009, Brasil, p. 8

Ações de combate ao contrabando de remédios na fronteira do Brasil com o Uruguai são ineficientes

Marco divisor entre Brasil e Uruguai: comércio liberado de medicamentos entre os dois países

Santana do Livramento (RS) e Rivera (Uruguai) ¿ Não é preciso apresentar passaporte ou qualquer outro documento para atravessar a ¿fronteira da paz¿. O aglomerado binacional, que fica a cerca de 500km de Porto Alegre, é dividido por uma praça. De um lado, free shops que oferecem produtos importados, como perfumes, vinhos, roupas e eletrônicos. Do lado brasileiro, uma cidade que vive para sustentar o ¿consumismo¿ da vizinha. O português se mistura ao espanhol. O real, o peso e os dólares também. A circulação de mercadorias é intensa. Todo fim de semana, as duas cidades lotam. Gente de todas as regiões do estado e até de fora, que vem em busca do bom preço. O comércio de rua ganha espaço com uma feira de bugigangas.

Como a fronteira entre os dois países é bem peculiar, tendo vínculos diários e constantes entre as duas cidades, o contrabando e a livre circulação de produtos faz parte da rotina das cidades. Apesar de as autoridades, como a Polícia Federal e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), terem intensificado nos últimos anos ações de combate ao contrabando e a falsificação na fronteira, ainda falta fiscalização. A reportagem do Correio/Estado de Minas percorreu as estradas que ligam o norte ao oeste do estado. Durante a noite, o movimento de caminhões e ônibus é intenso. Nenhum agente foi visto, nem mesmo nas unidades da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Durante o dia, na rodovia que liga a cidade a Porto Alegre, a situação foi a mesma. Na saída, porta de entrada para o Brasil, ninguém no posto. No lado uruguaio, a primeira barreira sanitária com aduana fica a 15km da cidade. O posto da Guarda Caminera fica em Manuel Diaz, a 70km. Barreiras móveis são montadas esporadicamente, mas a ilegalidade já tem seus esquemas para evitar a fiscalização. Redistribuem pacotes, subornam policiais ou cruzam a fronteira seca a pé ou em carroças.

Com medicamentos e produtos médicos não é diferente. Brasileiros aproveitam o baixo preço e a falta de controle das farmácias uruguaias. O comerciante Renato Ribeiro, de Porto Alegre, costuma ir à Livramento uma vez por mês e sempre compra remédios. ¿Da última vez, minha mãe me pediu um para arritmia cardíaca. No Brasil, custa mais de R$ 100. Paguei R$ 30.¿ Ele diz não temer problemas com a qualidade, apesar da Polícia Federal (PF) já ter feito apreensões de medicamentos falsificados na fronteira. Os vendedores das cinco farmácias da cidade estão acostumados com o movimento e têm nas mãos uma ¿bíblia¿ dos medicamentos, em que consta o nome do princípio ativo e dos similares uruguaios e brasileiros.

Prescrição A necessidade de receita não é nenhum impedimento no Uruguai. A sibutramina, que só é vendida com prescrição e retenção da receita médica no Brasil, está disponível em qualquer farmácia. Os vendedores insistem no produto local ¿ o Perfil ¿ e se comprometem a fornecer grandes quantidades para o cliente. Em uma farmácia, a pessoa até sugere que o produto seja vendido no Brasil para as ¿amigas¿. A sibutramina é muito usada no emagrecimento. ¿Esses são os que a gente mais vende¿, afirma a dona de uma farmácia no Uruguai, que preferiu não se identificar. O Xenical também é muito procurado na cidade, assim como os medicamentos para a disfunção erétil. Além do Viagra, são oferecidos remédios uruguaios e com preço bem mais barato.

Mercado aquecido com a Gripe A

A pandemia da gripe suína fez o mercado de medicamentos prosperar nas fronteiras brasileiras. Em Rivera, o "kit¿ para combater a influenza A (H1N1) está em todas as prateleiras e é oferecido insistentemente pelos balconistas. Inclui o Tamiflu, indicado para o tratamento, cuja comercialização está suspensa no Brasil, álcool em gel, umidificadores e máscaras. A caixa com 10 cápsulas varia entre R$ 90 e R$ 120.

No Paraguai, o fostato de oseltamivir é a vedete dos medicamentos pirateados ou sem registro. O antiviral também é usado no Tamiflu. A venda do oseltamivir em território nacional é proibida, mas é grande o interesse dos brasileiros pelo remédio que só tem eficácia 48 horas depois do aparecimento dos sintomas. Além do Oselta, comerciantes paraguaios oferecem outras versões genéricas do Tamiflu, o Biosid e Laporcina. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é impossível impedir a entrada do medicamento vindo do exterior, caso o paciente tenha receita médica. Ressalta, entretanto, que não se responsabiliza pela qualidade do produto.

Sem planos para o futuro

Paulo Roberto Vianna, 47 anos, Porto Alegre

Aquele dia não lhe sai da memória. Acordou cedo, às 6h30 já estava no hospital. Sempre foi um homem prudente. Por isso, quando o médico lhe disse que era preciso operar a hérnia, contrariou a opinião da mulher, reorganizou sua agenda de palestras e marcou para o início de dezembro a cirurgia.

Em uma escala de zero a 10, avaliaria sua dor em grau três. Precisava acabar com ela. ¿Só pensava na qualidade de vida que teria.¿ A rotina como especialista em segurança de trabalho cobrava-lhe mil quilômetros semanais em deslocamentos pelo Sul do Brasil. A cirurgia durou duas horas e meia.

Na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), para onde foi levado depois da operação, sentia calafrios. ¿É efeito da anestesia¿, explicou alguém. Foram seis dias de internação. O médico Ernani Abreu não apareceu nenhuma vez. Mas as dores não passavam e as doses de remédio eram aumentadas. Formaram-se coágulos em alguns de seus vasos sanguíneos, entre outras complicações.

Na véspera de Natal de 2001, procurou novamente o médico, que lhe pediu paciência. ¿Minha vida voltaria ao normal em breve, ele prometeu.¿ Já sabia do risco da musculatura das pernas sofrerem um atrofiamento, mas as sessões de fisioterapia regulares tinham justamente a função de evitá-lo. Em vão. ¿Tinha certeza de que alguma coisa estava errada, porque segui todas as orientações médicas.¿ Ele tinha razão. As próteses que ainda estão na coluna foram feitas com material de baixa qualidade, segundo médicos particulares.

Começou a investigar por conta própria. Percorreu órgãos oficiais, ministérios públicos estadual e federal. Telefonava para a Anvisa e secretarias de Saúde. Na internet, seguia as pistas de seu problema. Deparou-se com uma máfia de próteses. No lugar do alívio, a obtenção de respostas resultou em um quadro de depressão. Processou o médico.

Oito anos depois, ainda convive com a dor. Avalia-a em grau sete. Recebe todo mês R$ 939 do INSS, mas gasta R$ 600 com remédios. A mulher começou a trabalhar. O papel dele agora é cuidar da casa. Os filhos saíram da escola particular. Vendeu carro e apartamento. ¿Estava numa curva crescente. Hoje não espero qualquer coisa do futuro.¿ (AR)