Título: Atentado contra a História do país
Autor:
Fonte: O Globo, 15/06/2011, Opinião, p. 6

Um dos indicadores da qualidade de um regime democrático é em que medida a sociedade tem acesso a informações de interesse público sob a guarda do Estado. Quanto maior a dificuldade nesse acesso, mais autoritário o regime, cujas características são o distanciamento e a desconfiança entre o poder público e os cidadãos.

O Brasil, um país de longa tradição de Estado unitário, não tem bom histórico neste aspecto. Daí até hoje não se poder consultar documentos sobre a Guerra do Paraguai, travada no século XIX, encerrada há 141 anos. Trata-se de um crime contra a memória nacional.

Coerente com o atual processo de consolidação da democracia no país, quando se completam 26 anos ininterruptos de estado de direito, recorde na República, tramita no Senado a Lei de Acesso à Informação Pública.

Enviado ao Congresso em 2003, no início do governo Lula, o projeto de lei moderniza as regras de consulta a essas informações e aproxima o Brasil, neste aspecto, de países desenvolvidos e democráticos. A lei cria três níveis de restrição: documentos reservados (cinco anos de sigilo); secretos (15 anos) e ultrassecretos (25), com a possibilidade de uma renovação de prazo em cada nível. Assim, o máximo que um arquivo do Estado ficará hermeticamente fechado será por 50 anos.

É razoável, se considerarmos que os Estados Unidos acabam de liberar arquivos da Guerra do Vietnã 36 anos depois do encerramento do conflito. Mesmo assim, com 11 palavras censuradas, uma prerrogativa também aceitável do Estado.

Mas o país pode recuar para a velha opacidade com que os políticos brasileiros costumam proteger suas biografias, funcionais ou não, e instituições se colocam acima da sociedade, caso o governo Dilma de fato aceite o inaceitável e acolha o veto dos ex-presidentes Fernando Collor e José Sarney, do Itamaraty e das Forças Armadas à nova lei. Todos desejam manter o sigilo eterno. Trata-se de uma excrescência, inadequada a um país democrático. O que temem ex-presidentes, o Itamaraty e as Forças Armadas causar, ou enfrentar, quando seus arquivos forem abertos 50 anos depois de terem sido classificados e trancafiados?

A mais poderosa nação do planeta esperou apenas 36 anos para permitir consultas sobre uma guerra em que foram cometidas atrocidades capazes, é muito provável, de superar o que se esconde nos registros sobre a entrada de tropas brasileiras no Paraguai.

É a certeza de que terá informações sobre a sua gestão abertas à sociedade que ajuda a enquadrar os governantes no padrão mais adequado da ética. Realimenta a democracia americana, por exemplo, o fato de Sarah Palin ter de fornecer à imprensa, por força de lei, os e-mails despachados do seu gabinete quando era governadora do Alasca.

Caso o governo Dilma Rousseff se curve ao veto, será, também, de extrema incoerência com o que prega em relação aos arquivos dos porões da ditadura militar. Quem defende a constituição da Comissão da Verdade, para familiares de mortos e desaparecidos nos Anos de Chumbo saberem o destino dos parentes, não pode aceitar a perpetuação do sigilo eterno em informações do Estado. No mínimo, será cúmplice da censura de partes da História brasileira.