Título: Redução de danos
Autor:
Fonte: O Globo, 06/06/2011, Opinião, p. 6
TEMA EM DISCUSSÃO: A descriminalização como estratégia contra as drogas
O lançamento do documentário "Quebrando o tabu" marca uma nova etapa no movimento em favor da descriminalização das chamadas drogas leves no país. Autor de um depoimento ao filme, o ex-presidente Fernando Henrique consolida, com essa participação, o importante papel que assumiu, não só no país, mas em nível internacional, na busca de uma política que ajude a enfrentar o flagelo das drogas a partir de um novo ponto de vista, diferente da fracassada estratégia imposta ao mundo pelos Estados Unidos. Baseada numa linha dura de viés policial-militar, a política americana não deu certo: o mundo continua gastando bilhões de dólares numa guerra que é impossível vencer, mas na qual se pode entrar com o objetivo mais realista de reduzir danos.
No depoimento ao documentário, FH ratifica a defesa da descriminalização da maconha. É uma mudança radical no conceito dessa guerra que continua fazendo milhões de vítimas em todo o mundo e que, travada apenas com as armas da ortodoxia policial-militar, não tem dado sinais de ganhos positivos. Não se trata de opinião isolada: comungam com o ex-presidente brasileiro, também em depoimentos ao filme ou em ativa participação na Comissão Global de Política sobre Drogas, presidida por FH, personalidades como os ex-presidentes Bill Clinton e Jimmy Carter (EUA), César Gavíria (Colômbia), Ruth Dreifuss (Suíça), o diretor da Drug Policy Alliance, Ethan Nadelman, o ex-secretário-geral da Otan Javier Solana e o ex-secretário do Tesouro americano George Schultz.
Essa política de redução de danos parte de uma evidência: a cruzada lançada em 1971 a partir dos EUA não logrou obter vitórias que reduzissem a expansão da droga no mundo. Se é fato que tem havido queda de consumo de alguns tipos de drogas (principalmente a cocaína) nos EUA, não é menos verdade que houve um realinhamento de mercado: nos últimos anos, dobrou o número de usuários do pó na Europa, e em todo o planeta cresce o total de consumidores de drogas sintéticas.
Trata-se, portanto, de um flagelo que precisa ser combatido com instrumentos que busquem não uma utopia - acabar com o tráfico e banir os entorpecentes do mundo -, mas alcançar metas mais realistas e que deem alternativas de tratamento aos viciados. Em suma, combater o tráfico sim, com o braço pesado do Estado, mas diferenciar o usuário do traficante. Não é o caso, óbvio, de estimular o consumo, mas partir do fato consumado de que há pessoas que, por quaisquer descaminhos, acabaram se enredando na malha do vício e dele têm o direito de sair.
A experiência de descriminalizar a maconha tem obtido resultados positivos nos países que optaram por essa estratégia - Espanha, Itália, Portugal, Argentina, República Tcheca, entre outros. Portugal é exemplo emblemático: desde que passou a enfrentar o flagelo de forma diferenciada, há dez anos, o país logrou reduzir o número de dependentes, graças a programas de saúde pública que ajudaram milhares de pessoas a se livrar do vício.
No Brasil, houve avanços na legislação, principalmente na diferenciação entre usuários e traficantes. Mas a norma ainda não estabelece com clareza os parâmetros para esta diferenciação, o que, por exemplo, dá margem a interpretações diferenciadas nas delegacias quando alguém é preso portando drogas. E há muito o que avançar também na criação de uma rede de ajuda aos dependentes. Com a experiência de administrador e credibilidade pública, Fernando Henrique tem muito a contribuir nesta luta.