Título: Tom de desencontro
Autor: Fleck, Isabel
Fonte: Correio Braziliense, 11/08/2009, Mundo, p. 20

Chávez fala em ¿ventos de guerra¿ por causa das bases militares colombianas cedidas aos EUA. Lula e Cristina Kirchner articulam nova cúpula para tratar o assunto na presença de Uribe e, possivelmente, de Obama

O único consenso alcançado após o breve encontro entre os chefes de Estado da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), em Quito, foi quanto à necessidade de uma outra reunião para discutir a cessão de bases militares colombianas aos Estados Unidos. A intenção é que o novo encontro se realize em ¿território neutro¿ ¿ já oferecido pela presidenta argentina, Cristina Kirchner ¿, com a presença de Álvaro Uribe e, quem sabe, até de Barack Obama ¿ como sugerido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De resto, a cúpula do Equador serviu de palco para a retórica anti-imperialista por parte do venezuelano Hugo Chávez, do boliviano Evo Morales e do anfitrião, Rafael Correa, que assumiu a presidência da Unasul e tomou posse para o segundo mandato à frente do governo equatoriano.

¿Cumpro com minha obrigação moral de alertar: ventos de guerra começaram a soprar (na América Latina)¿, profetizou Chávez durante a única reunião oficial da cúpula, realizada no Convento de San Agustín. O venezuelano queixou-se pelo fato de a questão das bases não ter entrado no documento final da cúpula, e ainda afirmou que é ¿inevitável¿ uma resposta militar a qualquer ¿violação¿ de seu território por parte da Colômbia. A declaração foi feita um dia depois de Chávez ter denunciado uma incursão militar colombiana em seu país, o que foi desmentido por Bogotá.

Morales criticou o acordo militar em fase final de negociação entre EUA e Colômbia, argumentando que, em alguns países, militares norte-americanos ¿têm sido treinados para atentar contra líderes sociais¿. ¿Temos de evitar que a Colômbia se torne um Israel (da América Latina)¿, disse Morales, em referência à crescente cooperação militar com Washington. Apesar de ter usado um tom um pouco mais ameno ¿ até por conta da posição que passa a ocupar na Unasul ¿, Correa não deixou de alfinetar o governo colombiano durante boa parte de seu discurso de posse, na Assembleia Nacional. Segundo ele, a instalação de militares dos EUA no país vizinho é um assunto ¿extremamente grave¿. ¿Levantamos claramente nossa voz de protesto contra essa situação, mas não se preocupem: apesar de toda a inquietação, os homens livres de nossa América vencerão os mensageiros do imperialismo¿, bradou.

Correa condenou a ¿hipocrisia¿ com a qual a imprensa internacional aponta relações entre integrantes de seu governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). ¿Nós queremos que o mundo inteiro entenda que os problemas de guerrilha, de paramilitarismo, de narcotráfico, de cultivo de coca, de incapacidade de controlar o território nacional, de narcopolítica não estão no Equador, mas na Colômbia¿, argumentou.

Contraponto Como esperado, o tom de moderação no encontro veio do lado brasileiro, com apoio da Argentina. Lula deixou claro aos colegas que um assunto delicado como o do acordo EUA-Colômbia só ¿se resolve com uma conversa, olhando na cara¿. Por isso, sugeriu que uma cúpula extraordinária da Unasul deveria contar também com a presença dos Estados Unidos. Uma reunião de chanceleres e ministros de Defesa está agendada para 24 de agosto, em Quito, mas a Colômbia já anunciou que não irá.

A argentina Cristina Kirchner não só apoiou Lula, como se dirigiu aos mais exaltados em tom de reprovação. ¿Está se criando um estado de beligerância inédito e inaceitável¿, disse a presidenta, pedindo que os presentes evitassem ¿discursos inflamados¿. ¿Esse problema não é militar, mas político¿, completou. Cristina ofereceu Buenos Aires para um possível encontro e ressaltou a importância de enviar o convite a Álvaro Uribe, já que na capital argentina ¿ele não se sentiria hostilizado¿. O governo colombiano foi representado em Quito pela vice-ministra das Relações Exteriores, Clemencia Forero, que se limitou a sustentar que a presença militar dos EUA na Colômbia é um ¿assunto interno¿.

Volta antecipada O presidente Lula deixou o Equador antes mesmo da posse do colega Rafael Correa. Preocupado com a saúde do vice, José Alencar, Lula se desculpou com o anfitrião e embarcou de volta ao país logo após a curta reunião da Unasul. Em entrevista na base aérea de Quito, o presidente disse ter recebido um telefonema informando que Alencar, que luta contra um câncer de intestino, fora hospitalizado novamente em São Paulo. ¿Fiquei preocupado e comuniquei ao presidente Rafael Correa que não ia ficar para a posse¿, disse. Lula já tinha optado por não ficar para o almoço com os chefes de Estado, evitando assim se estender em um encontro regado a discursos inflamados contra a Colômbia e os EUA. Alencar recebeu alta do Hospital Sírio-Libanês antes mesmo de Lula chegar ao Brasil.

O governo colombiano não quer a unidade da América do Sul, porque está sujeito ao mando do império¿

Hugo Chávez, presidente da Venezuela

Isso se resolve com uma conversa, olhando na cara. Temos que entrar em acordo sobre o futuro da Unasul

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil

Temos de evitar que a Colômbia se torne um Israel (da América Latina)

Evo Morales, presidente da Bolívia

É imprescindível convidarmos o presidente Uribe a um lugar onde não se sinta hostilizado

Cristina Kirchner, presidenta da Argentina

Honras para Zelaya

O presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, teve recepção de chefe de Estado em Quito, como convidado oficial para a solenidade de posse do colega Rafael Correa em seu segundo mandato. Aplaudido com entusiasmo, Zelaya sentou-se entre o cubano Raúl Castro e o venezuelano Hugo Chávez, dois dos defensores mais aguerridos de seu retorno incondicional ao poder. E, embora a distância, saboreou outra vitória diplomática na Cúpula da América do Norte, celebrada em Guadalajara (México), onde o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reafirmou sua condenação ao golpe desfechado pelos militares hondurenhos em 28 de junho.

¿O presidente Zelaya segue sendo o presidente democraticamente eleito e, por consideração ao povo de Honduras, a ordem democrática e constitucional deve ser restabelecida¿, disse Obama à imprensa durante o encontro com os colegas do México e Canadá. Cobrado por vários governos latino-americanos a tomar atitudes mais firmes contra o governo de fato chefiado por Roberto Micheletti, que resiste a entregar o poder, o presidente americano reiterou que o governante hondurenho ¿foi vítima de um golpe de Estado e deve retornar para cumprir o resto do mandato¿.

Obama não citou nomes, mas respondeu indiretamente a Chávez, ao boliviano Evo Morales e outros dirigentes do bloco bolivariano, que acusam ¿setores belicistas¿ dos Estados Unidos de apoiarem a quartelada e sugerem que há leniência da Casa Branca com o governo de fato. ¿Isso parte das mesmas pessoas que dizem que estamos sempre nos intrometendo e que `os ianques¿ devem sair da América Latina¿, argumentou o presidente americano. ¿O fato de pensarem que deveríamos agora atuar da mesma forma pela qual sempre nos criticaram mostra hipocrisia.¿

No âmbito da cúpula de Guadalajara, o presidente mexicano, Felipe Calderón, propôs a formação de ¿um grupo de países amigos de Honduras, que colabore com o presidente (da Costa Rica), Óscar Arias, e com a Organização dos Estados Americanos (OEA)¿. O governo de Micheletti negou permissão para que uma comissão de chanceleres da OEA visitasse Honduras, impondo como condição para recebê-la que não estivesse com o grupo o secretário-geral do organismo, José Miguel Insulza ¿ responsável pela decisão de suspender o país centro-americano enquanto Zelaya não for reconduzido ao poder.