Título: Democracia real
Autor:
Fonte: O Globo, 16/06/2011, Opinião, p. 7

Uma vez mais, a população jovem expressa sua indignação diante da falta de horizontes e perspectivas, sob as marcas do desemprego que alcança 45% dos jovens na Espanha. Desde 15 de maio, o movimento Democracia Real Ya propaga a sua bandeira em Madri e em diversas cidades da Espanha, clamando por justiça social, combate à corrupção e mudanças no sistema eleitoral. A incapacidade do Partido Socialista de enfrentar a crise econômica resultou em sua devastadora derrota eleitoral, com o fortalecimento do partido conservador (PP ¿ Partido Popular) nas últimas eleições municipais e regionais na Espanha.

Também sob o impacto do desemprego e da frustração com o futuro, os jovens compõem a força motriz da ¿primavera árabe¿, que tem fomentado um quadro de históricas transformações no Norte da África e no Oriente Médio desde o fim de janeiro de 2011. A reivindicação é por democracia, participação política, direitos humanos, estado de direito e justiça social, com a derrocada de regimes ditatoriais há sucessivas décadas hospedados no poder no Egito, na Tunísia e no Iêmen. Também se somam crescentes rebeliões de civis na Líbia e na Síria, articuladas com o amplo uso da internet como um eficaz instrumento de mobilização política.

A negação de direitos, a exclusão político-social, o rechaço ao pluralismo não mais são aceitáveis a significativos setores da população do mundo árabe ¿ que ostenta os piores indicadores no campo dos direitos humanos das mulheres, com extremas desigualdades de gênero. As extraordinárias mudanças ocorridas na região assumem uma importância similar ao fim da Guerra Fria e à dissolução da então URSS.

Contudo, como adverte Guillermo O¿Donnell, a instalação de um governo eleito democraticamente inaugura uma segunda transição ¿ mais complexa e longa que a transição inicial do regime autoritário ditatorial. Esta segunda transição traduz o desafio de institucionalização e consolidação do regime democrático.

Se, na Espanha, o movimento Democracia Real Ya revela sua insatisfação com a democracia política procedimental, demandando, sobretudo, justiça social, no mundo árabe as transformações desejadas compreendem não só a transição de regimes autoritários para regimes democráticos, mas, especialmente, a consolidação democrática, com o exercício de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

De acordo com o Freedom House, há aproximadamente 40 anos mais da metade do mundo era governada por autocracias e milhões viviam sob a violência do totalitarismo. A maioria do mundo hoje vive em Estados democráticos. Em 2010, o número de democracias eletivas alcançou 115 países. Contudo, 47 países ainda são considerados como não livres (tendo liberdades básicas sistematicamente violadas) ¿ o que abrange 35% da população global. Considerando o critério regional, na Europa ocidental 96% dos países são considerados livres (com pluralismo político, respeito às liberdades civis e uma imprensa independente), enquanto no Norte da África apenas 6% o são.

É neste contexto que os direitos políticos surgem como direitos de empoderamento, sendo componentes estruturais do desenvolvimento, como afirma Amartya Sen. A democracia requer acesso à informação, liberdade de expressão, diálogo público, com a participação dos setores mais vulneráveis. Adiciona Amartya Sen que, na história, jamais se constatou fome extrema em uma democracia em funcionamento ¿ o que simboliza o poder protetivo das liberdades políticas.

A participação política deve ser livre, ativa e efetiva, o que exige, de um lado, a expansão do universo daqueles que participam do jogo democrático, com base nos princípios da igualdade e da proibição da discriminação. Por outro lado, exige a ampliação dos espaços participativos, na medida em que a qualidade de uma democracia se mede não apenas por quem dela participa, mas também como participa, com base nos princípios de transparência e accountability (prestação de contas). Além de livre e ativa, a participação há de ser efetiva, constituindo a expressão da soberania popular no exercício do poder ¿ que deve ter na cidadania a origem e a legitimidade da autoridade pública.

Que este momento histórico permita avançar no fortalecimento da democracia e da justiça global, em um crescente processo de empoderamento de setores tradicionalmente excluídos, sob a força emancipatória dos direitos humanos como contrapoder a debelar toda e qualquer forma de absolutismo.

FLÁVIA PIOVESAN é professora de Direito da PUC-SP.