Título: O labirinto de Evo
Autor: Casado, José
Fonte: O Globo, 17/06/2011, O Mundo, p. 30

Pressionado por déficit público, inflação e greves, presidente da Bolívia faz caixa anistiando veículos ilegais

Evo Morales, de 49 anos, é um presidente à procura de US$1 bilhão. É de quanto precisa para que seu governo consiga, pelo menos, deixar as contas próximas do equilíbrio - ou seja, se aproximar do empate entre as despesas e a receita no final deste ano. A Bolívia está com um déficit equivalente a 5% do Produto Interno Bruto (US$20 bilhões). O problema é que esse déficit está crescendo e pode chegar a 6% do PIB na revisão prevista para agosto, segundo as projeções oficiais.

As despesas estatais estão avançando em velocidade muito superior à arrecadação de impostos, impulsionadas por aumentos salariais extraordinários (de 15%) que o governo Morales concedeu aos funcionários públicos, empregados das empresas estatais, aposentados e pensionistas. O Estado boliviano controla as maiores empresas, é o principal empregador e arbitra os salários. O quadro econômico é agravado por uma inflação em alta (saltou de 6% para 9% nos últimos 18 meses) e sugere um retorno ao antigo ciclo de abalos fiscais, uma rotina até o início do governo Morales, em 2006. O problema é que déficits nas contas públicas sempre redundaram em agudas crises políticas.

Morales sabe disso porque cresceu na política como sindicalista e líder de oposição aos sucessivos governos que fizeram malabarismos para equilibrar as contas com políticas econômicas mais conservadoras. Na História boliviana recente, ninguém surfou melhor que ele sobre as pressões sociais, a partir da crise nos cofres estatais, comandando greves e confrontos violentos nas ruas. Agora, Morales está no outro lado do balcão - suas alternativas para buscar socorro financeiro externo são limitadas, e as pressões sociais internas estão aumentando.

Passeatas diárias contra o governo

La Paz, cidade de um milhão de habitantes, retomou a rotina das passeatas diárias contra o governo. Na raiz está um aumento de cerca de 50% nos preços dos alimentos (responsáveis por 39% da composição do índice geral de inflação). Isso aconteceu por causa de uma decisão desastrada: na primeira semana de janeiro, Morales anunciou um aumento de 80% na gasolina. No dia seguinte, todos os preços dispararam. Sob ameaça de convulsão nacional, o governo viu-se obrigado anular o aumento dos combustíveis. Era tarde, o estrago estava feito. E os protestos nas ruas começaram.

Está previsto para a próxima segunda-feira uma greve nacional de transportes "por tempo indeterminado". Ela pode levar a uma greve geral, pois os conflitos salariais se acirraram em todos os setores. Paradoxalmente, esse é um protesto contra uma decisão governamental percebida como correta pela maioria dos bolivianos. São 138 mil motoristas de ônibus, táxis e vans pedindo a revogação de um decreto presidencial que proíbe a circulação de veículos com mais de 12 anos de uso. Atinge 95% do sistema de transporte público do país. Nem é preciso usar os veículos, basta um olhar sobre o tráfego para óbvia constatação: é sucata sobre rodas.

Para um governo em desesperada busca por dinheiro, essa seria uma chance de resolver dois problemas - a melhoria do sistema de transporte e um alento ao caixa do Tesouro. O licenciamento de veículos novos tem um custo variável entre US$2 mil e US$6 mil, de acordo com o modelo.

De olho no caixa, Morales decidiu, também, dar uma anistia aos veículos sem documentos, na maioria, supostamente roubados no Brasil, Chile e Argentina. O governo calculou "legalizar" 10 mil novos veículos. Em três dias, apareceram quase 40 mil carros, sem documentos, para anistia.

Influência de Chávez, revés petroleiro

Na contabilidade para cobrir o déficit de US$1 bilhão seria possível arrecadar cerca de US$300 milhões apenas com taxas sobre veículos novos em circulação. Faltou combinar com os adversários, aqueles que pagariam a fatura, além de calcular quanto isso representaria em gastos adicionais na importação de combustíveis. Numa Bolívia sem base industrial e sempre dependente da exportação de matérias-primas (antes era o estanho, agora é o gás natural), a política costuma oscilar em movimentos pendulares, entre o nacionalismo estatista e o liberalismo de mercado.

Morales habituou-se a ver em tudo uma potencial ameaça do "imperialismo neoliberal", como repete. Sob estímulo do amigo venezuelano Hugo Chávez, em 2006, chegou a usar o Exército para "expropriar e nacionalizar" os ativos do maior investidor estrangeiro da Bolívia, a Petrobras. Gesto simbólico que custou caro: desde então, a perfuração de novos poços de gás estancou. Por total ineficiência da estatal boliviana YPFB e da "assistência técnica" venezuelana, as perfurações despencaram de uma média de 60 por ano para, no máximo, cinco.

Seus antecessores usavam 60% das receitas da estatal petroleira boliviana para financiar as contas do governo. No labirinto político e econômico de Morales, não ficou espaço sequer para essa alternativa. Agora, se decidir vetar aumentos salariais e confrontar greves e passeatas, corre o risco de ficar parecido com os inimigos "neoliberais" que ainda critica em praças públicas.