Título: O espião que veio do frio
Autor: Magalhães-Ruether, Graça
Fonte: O Globo, 18/06/2011, História, p. 36
Alemanha lembra Richard Sorge, jornalista e playboy que ajudou Stalin a derrotar Hitler
IMAGEM DE Richard Sorge (acima): abandonado à própria sorte por Stalin depois que foi capturado, espião acabou recebendo o título de herói soviético e ganhou monumento em Moscou (ao lado)
SELO DA antiga Alemanha Oriental com a efígie de Sorge: homenagens tardias
Setenta anos após a invasão da antiga União Soviética pelas tropas de Hitler, iniciada em 22 de junho de 1941 com a Operação Barbarossa, os alemães redescobrem a figura de um homem que teve um papel fundamental na destruição das tropas nazistas. Uma mistura de playboy e James Bond, Richard Sorge, o espião de Stalin, telegrafou de Tóquio informações estratégicas e decisivas sobre a Segunda Guerra Mundial para o ditador soviético. Hoje, um grupo crescente de historiadores coloca a vitória de Stalin no front soviético como fundamental para que os Aliados ganhassem a guerra.
Em setembro de 1941, Sorge, filho de um alemão e uma russa, informou a Stalin que o Japão havia decidido não atacar a URSS. Em reação, o ditador soviético transferiu toda a sua força militar da Sibéria, 34 divisões, para enfrentar as tropas alemãs. De acordo com o historiador Arnd Bauerkämper, da Universidade Livre de Berlim, a reação soviética tornou possível o começo do fim da poderosa Wehrmacht.
A estratégia da Guerra Relâmpago (Blitzkrieg) na União Soviética começou a falhar, e fez os alemães sangrarem. Praticamente toda família alemã perdeu um parente no confronto entre Hitler e Stalin. Mas Richard Sorge, visto por historiadores como o melhor espião de todos os tempos, caiu no esquecimento. Sorge foi capturado em 1941 pelos japoneses. Em novembro de 1944, ele foi executado na forca, aos 49 anos de idade. Stalin o abandonara à própria sorte.
Abandonado por ordem do ditador
O ditador soviético via em Sorge um inconveniente. O espião o havia alertado no início de junho de 1941 sobre a invasão alemã e Stalin ignorara o aviso. Para se livrar da constrangedora lembrança, Stalin não fez nada para salvar Sorge. Os japoneses chegaram a propor uma troca de prisioneiros, mas a oferta foi ignorada por Moscou. Segundo Bauerkämper, Stalin via no reconhecimento de Sorge o risco de ser criticado por ter ignorado o primeiro despacho e não ter tomado medidas contra a invasão alemã. Sorge foi enforcado em 7 de novembro de 1944, dia do 27º aniversário da Revolução Bolchevique. Em seu túmulo, no cemitério Tama, num subúrbio de Tóquio, uma placa de mármore preto lembra, em russo, que ele foi ¿herói da URSS¿.
A placa foi colocada em 1964, quando a URSS reconheceu Sorge como herói nacional. Só quando o Kremlin passou a admitir os crimes do stalinismo, nos anos 60, o espião foi lembrado. Em Moscou, ele foi homenageado com um monumento. Na antiga Alemanha Oriental, o ex-agente foi lembrado com um selo. Sorge passou a ser tema de livros e de filmes que tentam reconstruir a biografia de um homem que resolveu ser espião por pacifismo, porque acreditava que só com a vitória do comunismo seria possível evitar guerras no futuro. Ou, como mostra o diretor japonês Mashiro Shinade no filme ¿Espião por paixão¿, uma co-produção alemã-japonesa, por aversão à ideologia racista.
Richard Sorge nasceu em Baku, no Azerbaijão, em 4 de outubro de 1895. Quando tinha pouco mais de 3 anos, a família se mudou para Berlim. Seu tio-avô, Friedrich August Sorge (1828-1906), fora amigo de Karl Marx e Friedrich Engels. Porém, foi a experiência dramática de Sorge na Primeira Guerra Mundial, em que foi gravemente ferido e por pouco não perdeu as pernas, que o levou a abraçar o comunismo e o pacifismo.
Depois de estudar nas universidades de Berlim e de Kiel, no norte da Alemanha, Sorge filiou-se ao Partido Comunista e iniciou os contatos com o Komintern, a organização internacional do partido comunista soviético. Disfarçado de correspondente do jornal alemão ¿Frankfurter Zeitung¿ na Ásia, ele escrevia artigos até para um jornal nazista. Sorge organizou uma rede de mais de 40 espiões a partir de 1933 e se infiltrou na cúpula da diplomacia alemã. Para os alemães, o jornalista, que tinha até uma carteira de membro do partido nazista NSDAP (sigla do nome em alemão) desde 1934, era o homem mais bem informado da Ásia. Também tinha fama de conquistador de mulheres, gostava de beber e de alta velocidade.
As informações estratégicas, como sobre o plano alemão de ataque à URSS, ele recebeu de Eugen Ott, secretário e mais tarde embaixador alemão no Japão. Sorge encarnava com facilidade o papel de jornalista e mulherengo bem de vida. E ninguém suspeitou por muito tempo que trabalhasse para o inimigo soviético. Mesmo quando Eugen Ott descobriu um caso entre Sorge e sua mulher, Helma Ott, não tomou qualquer providência, porque via nele um aliado político.
Segundo Arnd Bauerkämper, Stalin ignorou o primeiro despacho de Richard Sorge sobre o início da invasão alemã porque não acreditava que Hitler fosse louco o bastante para realizar uma guerra em várias frentes. Além disso, depois do Pacto Hitler-Stalin, de 1939, onde os dois haviam dividido entre si a Polônia, o ditador soviético não acreditava que o nazista quebrasse a promessa de não atacar seu país.
Já em setembro de 1941, os soviéticos reagiram imediatamente à informação sobre a decisão tomada pelo governo japonês semanas antes de não atacar a Sibéria. Se no início estavam desprevenidos, os soviéticos começaram a resistir, com mais soldados e equipamentos, impedindo os alemães de tomarem Moscou. Os nazistas, até então vistos como invencíveis, começaram a sofrer grandes perdas.
Conflito no leste pressionou alemães
A guerra no front leste matou milhões de pessoas, muitas delas civis, dizimadas pelas tropas nazistas no caminho da invasão. Judeus e partisans foram executados em massa na Ucrânia e na Bielorrússia. O sangrento front leste mudou também a opinião de muitos militares alemães, que começaram a criticar Hitler. Depois de participar durante 30 meses da guerra no leste da Europa, o general alemão Henning von Tresckow começou a tecer um plano de atentado contra Hitler, que foi concretizado com o grupo de Klaus Schenk von Stauffenberg, em julho de 1944. Mas, como se sabe, Hitler sobreviveu e os conspiradores foram executados.
Depois da Batalha de Stalingrado, no começo de 1943, a maior da História, que resultou na morte de cerca de 700 mil pessoas dos dois lados, a continuação da guerra passou a ser, do ponto de vista dos alemães, um ato suicida, destaca Bauerkämper. Mas os comandantes do Exército Wilhelm Keitel e Alfred Jodl obedeciam cegamente a Hitler, que havia dado a ordem de guerra até a morte, de não se entregar de forma alguma.
¿- A moral das tropas alemãs estava destruída. Muitos soldados desertaram, apesar do risco de serem mortos ¿ lembra Bauerkämper.
Se Hitler tivesse ganho a guerra contra Stalin, o saldo de vítimas do Holocausto teria sido muito maior do que os seis milhões de judeus que foram assassinados. Os alemães haviam elaborado em 1941 um ¿plano geral para o leste¿, que previa dizimar 40 milhões de eslavos.
¿ A ideologia racista dos nazistas reconhecia a escala das raças. No topo estavam os arianos, depois vinham os europeus do sul, como italianos e espanhóis. No final da escala estavam os eslavos, que eram seguidos pelos judeus ¿ afirma o historiador berlinense, que é autor de vários livros sobre o nazismo e a Segunda Guerra Mundial.