Título: O discurso do rei, versão Marrocos
Autor:
Fonte: O Globo, 18/06/2011, O Mundo, p. 34
Mohamed VI abdica da própria influência em reforma constitucional questionada por opositores
O REI Mohamed VI (à direita) reza ao lado do irmão, príncipe Mouly Rachid, em Rabat: poder limitado, mas ainda presente
MARROQUINOS ASSISTEM pela TV ao discurso real em um café: desconfiança
RABAT
Aconvocação para novas manifestações, a serem realizadas amanhã, contra o governo do Rei Mohamed VI foram mantidas nas redes sociais ¿ num sinal de que a nova Constituição anunciada ontem pelo monarca do Marrocos não atende às reivindicações populares diante da insatisfação com o desemprego e a pobreza crescentes no país norte-africano. Pressionado pela Primavera Árabe, três meses depois de criar um comitê para rever a Constituição, o rei surpreendeu ao abdicar, em parte, do ¿poder sagrado¿ que lhe era atribuído pela legislação marroquina, aumentando o papel do governo e do Parlamento no Estado. As mudanças serão submetidas à aprovação popular em um referendo marcado para o próximo dia 1º.
¿ Falta muito para a monarquia parlamentar porque o rei ainda conserva muito poder. A corte se regenera com roupas novas e muita maquiagem ¿ criticou o intelectual marroquino Ahmed Benseddik, que vem participando ativamente dos protestos contra o governo.
Com as reformas, o Marrocos deixa de ser uma monarquia quase absoluta, mas tampouco se transformará numa monarquia parlamentar nos moldes da Europa. Aos 47 anos, o jovem Rei Mohamed VI foi à TV anunciar as mudanças que, promete, consolidam os pilares de uma monarquia constitucional. O soberano é representante da mais antiga dinastia árabe no poder, a Alauíta, que clama ser descendente direta do profeta Maomé. E é esse o respaldo histórico e religioso que lhe atribui, segundo a Constituição atual, um caráter ¿sagrado¿ ¿ e do qual concordou, surpreendentemente, em abrir mão, tornando-se, caso o referendo passe no teste popular, apenas um rei ¿inviolável¿.
¿ Como bom marroquino, votarei no referendo. E vou votar pelo ¿sim¿, já que a nova Constituição tem todos os princípios democráticos ¿ declarou Mohamed VI.
Aprovada pelo Conselho de Ministros, presidido pelo rei, a nova Constituição determina que o monarca mantenha o comando das Forças Armadas. Entre as mudanças mais significativas está o fato de que o primeiro-ministro ¿ até então designado pelo monarca ¿ terá que ser um representante do partido que vencer as eleições legislativas. Ao premier será designado, ainda, o papel de presidente do governo, podendo conduzir reuniões do Conselho de Ministros e ficando também sob sua responsabilidade a escolha do Gabinete e de outras posições, como embaixadores e diretores de empresas estatais.
O porém, segundo analistas, é que para algumas dessas indicações, o futuro primeiro-ministro necessitará do aval do rei ¿ que permanece uma figura central. Apesar de perder a designação de ¿sagrado¿, ele será ¿inviolável¿, mantendo o título de ¿Comandante dos Crentes¿ ¿ o líder espiritual dos muçulmanos, que detém o controle de todos os assuntos religiosos do país. Segundo o texto proposto, o Islã é a religião do Estado, e o rei garante a liberdade religiosa e de culto, embora não aceite o que chama de ¿liberdade de consciência¿ ¿ ou seja, um muçulmano marroquino nasce e morre muçulmano, sendo impedido de trocar de religião.
Idioma berbere se torna oficial
O Parlamento de 325 cadeiras também teve seu papel reforçado de acordo com a proposta, ganhando poderes para alterar a Constituição, criar comitês de investigações e conceder anistias. Mas, num dos pontos mais controversos da reforma está o idioma berbere ¿ falado em três regiões do país ¿ que ganhou, finalmente, o status de uma das línguas oficiais do Marrocos, despertando a ira dos setores islâmicos mais conservadores do país.
Embora sob pesadas críticas pelo mau desempenho econômico, o Rei Mohamed VI ainda é uma figura querida no Marrocos. Após o pronunciamento, acompanhado com atenção em bares e cafés, muitos carros saíram às ruas em um buzinaço ostentando a bandeira do país. Mas, ativistas do bloco pró-democracia 20 de Fevereiro condenaram as mudanças.
¿ Antes tínhamos um monarca absoluto. Agora temos um monarca absoluto que também é o Papa ¿ ironizou Elaabadila Chbihna, uma das organizadoras dos protestos.
A deputada Mbarka Bouaida, da bancada governista, discorda:
¿ Acho progressivo. Provavelmente vamos precisar de outra Constituição em dez ou 15 anos, mas precisamos desta primeira para dar força aos partidos políticos.
Com opiniões aparentemente divididas e a promessa de novas manifestações, Hicham Ben Abdallah el-Alaoui, primo do rei e hoje pesquisador da Universidade de Stanford, na Califórnia, advertiu que as reformas dão alguma credibilidade para que o regime ignore os manifestantes e classifique-os como ¿não democráticos¿ ¿ estratégia usada pelo governo de Rabat para minimizar o impacto de três meses de manifestações incômodas, atribuídas pelo rei a ¿islâmicos e esquerdistas extremistas¿.
¿Esse cenário de discussão simulada entre os jogadores de sempre, e com final feliz parece uma conclusão precipitada¿, escreveu el-Alaoui no diário francês ¿Libération¿.