Título: Dinheiro público financia piratas
Autor: Herdy, Thiago; Rizzo, Alan
Fonte: Correio Braziliense, 12/08/2009, Brasil, p. 8

A partir de pregões eletrônicos, governos estaduais e prefeituras compram produtos médicos falsificados. fachada da empresa dentisfar, em carazinho (RS): remessa de medicamentos falsificados a 1.700km de distância.

Curvelo (MG) e Carazinho (RS) ¿ O poder público está comprando produtos piratas. O maior acesso dos municípios às ferramentas de pregão eletrônico tem levado prefeituras e órgãos estaduais a obter remédios e equipamentos médicos das mãos de fornecedores com CNPJ em dia, mas localizados a centenas de quilômetros de distância e incapazes de garantir a origem dos produtos. Na quarta matéria da série Falsificação da Cura, o Correio/Estado de Minas mostra que a disseminação de itens falsificados pelo país deixa o sistema público de saúde do Brasil cada vez mais vulnerável.

Em cena, governos desempenham papéis distintos. Na maioria das vezes, alegam serem vítimas dos distribuidores e da lógica do menor preço estabelecido pela Lei de Licitações. Mas nem sempre desconfiam dos valores muitos baixos ou verificam indícios de fraude.

Obrigada pela Justiça a fornecer 23 caixas mensais de Viagra a uma moradora vítima de hipertensão arterial (leia ao lado), a Prefeitura de Curvelo, na Região Central de Minas, abriu licitação para aquisição do medicamento por meio do portal CidadeCompras, da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Localizada a 1.700km de distância e com a proposta de oferecer cada caixa com quatro comprimidos a R$ 89,99 (valor 29,5% menor que o preço de tabela), a Dentisfar Comércio de Produtos Farmacêuticos Ltda., sediada em Carazinho, no Rio Grande do Sul, ficou à frente de outras cinco concorrentes e venceu a disputa.

O contrato com a prefeitura mineira é de julho de 2007, mas, cinco meses depois, a usuária do medicamento denunciou que os comprimidos eram falsos. A polícia apreendeu os lotes armazenados na prefeitura e notas fiscais fornecidas pela Dentisfar. Exames realizados pela Fundação Ezequiel Dias e consultas ao laboratório comprovam a fraude.

Notas fiscais emitidas em novembro de 2007 e março de 2008 citam a venda dos lotes 604883004A e 5048012D. Os laudos atestaram que a marca d¿água dessas caixas era falsa. A Pfizer informou ainda que as datas de fabricação e validade não conferiam com os registros originais. Os remédios falsificados não haviam sido entregues por uma distribuidora qualquer. Pesquisa nos portais de compras do poder público em todo o Brasil mostra que a Dentisfar já participou de licitações da Câmara dos Deputados, Ministério Público do Distrito Federal, governo de Goiás, além de dezenas de prefeituras dos três estados da Região Sul, Minas, Bahia e até do Rio Grande do Norte. De 2005 até os primeiros meses deste ano, apenas o governo federal pagou à empresa R$ 1,7 milhão por insumos médicos, principalmente para as Forças Armadas.

A Prefeitura de Curvelo rompeu o contrato com a empresa. A Polícia Civil em Minas instaurou inquérito e enviou, em setembro do ano passado, carta precatória à Delegacia de Carazinho. O documento determinava a tomada de depoimento dos sócios da Dentisfar à época: Neusa Carmen Becker, Milton Jorge Rabuske Xavier, Cristiano Rosseto da Silva, João Carlos Ortiz da Silva e Juliano Porto. Quase um ano depois, o resultado não havia chegado a Minas.

Em Carazinho, a 280km de Porto Alegre, quase ninguém sabe que os donos da rede de farmácias Brasil, com três unidades, são proprietários de uma das distribuidoras de maior porte da região.O novo prédio foi construído com recursos do Fundo do Amparo ao Trabalhador (FAT). Cinco funcionários protegem o portão, que passa a maior parte do tempo fechado.

A reportagem tentou ouvir o dono da empresa, que empregados disseram ser, atualmente, João Carlos Rabuske Xavier. Eles afirmaram que ele estava viajando e ninguém mais poderia falar. Ao lado da sede, está instalada a nova farmácia do grupo. Um banner garante medicamentos com até 60% de desconto. Além das drogarias, Rabuske é conhecido pela fabricação de remédios manipulados.

O empresário é sócio de outra empresa, a J.C. Xavier e Cia, que tem 147 protestos em cartório, além de 17 pendências financeiras. O empresário Márcio Sidimar Schneider é sócio minoritário da empresa. Os dois também são donos da Schneider e Xavier Ltda.

A reportagem deixou recado com os funcionários da empresa, porém, ninguém retornou. O Correio/Estado de Minas procurou também os sócios na época em que o inquérito foi aberto. Nem todos foram encontrados. O advogado Cristiano Rosseto negou qualquer envolvimento com o caso. ¿Eu e meu pai vendemos há muito tempo. Na nossa época, a empresa era só uma sala e tinha poucos clientes.¿ A reportagem pediu que ele mostrasse cópia do contrato de venda, ou mesmo que encaminhasse por e-mail. Nada disso foi feito.

Remédio que se desmancha

Alexandra S. Silva, de 31 anos, Curvelo, MG

Um dia acordou tossindo e com o lençol encharcado de sangue. Não tinha cortado o dedo ou machucado a boca. O problema era outro e só seria descoberto no início da juventude: hipertensão pulmonar. As artérias que chegam até o pulmão estão estreitas, a pressão sanguínea se eleva, por isso eles ficam cheios de sangue. ¿Durante uma crise, você tem certeza de que vai morrer.¿

Na adolescência, o jeito ¿meio mole¿ sempre foi alvo de preconceito. Conseguiu ir à faculdade e se formar em letras, mas não concluiu a pós-graduação porque a doença não deixou. Virou professora de escola pública, dá aulas da 5ª série ao 3º ano do ensino fundamental. Ainda hoje é obrigada a lidar com a falta de ar e a dor forte no tórax, que ocorrem ao menor esforço. Subir escadas, trocar de roupas e até mesmo falar são difíceis em períodos de crise. ¿É como um trator passando por cima de mim.¿

Para não correr o risco de morte súbita, o cardiologista receitou-lhe 150mg de citrato sildenafila por dia. É a substância principal do Viagra, remédio mais conhecido por combater disfunção erétil do que hipertensão pulmonar. A fama dos comprimidos azuis faz Alexandra ter vergonha de aparecer no jornal como usuária deles. Mas são as pílulas que lhe garantem força para levantar todos os dias. Atravessar a rua e conversar com o vizinho. Cuidar da única filha, de 12 anos.

Sem o remédio, não teria mais que três anos de vida, avisou-lhe o médico. A compra na farmácia resultaria em um gasto extra mensal de R$ 2,9 mil. Obteve na Justiça o direito de recebê-lo gratuitamente. No ano passado, observou que a caixa entregue pela prefeitura não tinha selo de segurança. O número do laboratório era estranho, assim como o tom de azul do comprimido. Quando o partiu com os dedos, ele se desmanchou. Para cortar o original, era preciso usar faca. Fez uma denúncia ao laboratório e à polícia.

¿Se aqui em Curvelo recebi remédio falsificado da própria prefeitura, imagina neste `mundão¿ afora?¿, pergunta. Sua doença não tem cura. Sem um transplante de pulmão, resta-lhe conviver com as limitações. O consolo é acreditar que o destino reserva alguma coisa às pessoas. E sempre é possível aprender algo com isso.

Nunca ouviu falar de Carazinho (RS), de onde partiu o remédio de mentira que lhe entregaram. Quando é provocada a falar sobre as pessoas que produziram e distribuíram o medicamento que ameaçou seu tratamento, a resposta é um longo silêncio. Depois, vem o lamento: ¿Quem ganha dinheiro à custa da vida do outro é digno de dó¿.